COMO TODO IDIOMA, nossa língua portuguesa não é perfeita. Talvez um de seus maiores defeitos encontra-se na palavrinha amor: vocábulo simples, duas sílabas, mas que comporta um porção de significados absolutamente díspares na língua de Camões. Para essa única palavra em português, outros idiomas dispõem de mais vocábulos. O grego elenca vários deles, por exemplo; todos a significarem situações diferentes. Os principais são ágape ou agapao (o amor incondicional, perfeito; o amor divino), eros (o amor físico e romântico), phileo (o amor da amizade, da simpatia e empatia) e storge (o amor da filiação, do sangue, o amor familiar). Há outros.
Daí decorre a imprecisão do termo em nosso idioma: uma coisa é o amor entre o rapaz e a moça, digamos, outra o amor ao ofício, ou o amor à verdade, ou o amor da mãe pelo filho. Embora expressem situações completamente diferentes e com variadas implicações, chamamos a tudo isso amor em língua portuguesa. Claro, as distinções subentendem-se, e na prática a coisa funciona. Nos textos, porém, para diferenciar cada circunstância do amor podemos recorrer a sinônimos (ternura, caridade, paixão, afeição, amizade etc.) e atrelá-las ao contexto, e as possíveis confusões se desfazem.
Em suas muitas acepções, o amor pode incluir também a busca da verdade, e aqui entramos no terreno da filosofia: se a imaginarmos como uma trama na qual se entrelaçam os melhores postulados do pensamento humano, e se puxarmos esse fio único que forma esse imenso tecido, encontraremos no seu ponto inicial o amor.
Dois filósofos brasileiros, Gerd Bornheim e Olavo de Carvalho, concordam com o maior de todos, Aristóteles: o filosofar, isto é, o ato filosófico em si, começa pela admiração ingênua, conforme o Bornheim¹, ou na contemplação amorosa, na designação de Carvalho². Em termos gerais, ambas as designações referem-se ao mesmo ato de filosofar, com base em Aristóteles.
A apreensão da realidade inicia-se a partir da contemplação ou admiração do objeto do conhecimento, qualquer que seja. Essa observação é despertada pela curiosidade dócil e interessada do observador e tem por fundo uma suspensão voluntária do julgamento, uma vontade de captar antes de pensar: apenas olhar e observar a princípio, à situação, ao fenômeno, à coisa observada, com toda a atenção.
Em suma, a ação de filosofar parte dessa contemplação, de alma aberta, de modo a deixar-se absorver pelos dados apresentados naquele fragmento de realidade diante dos olhos. Então, o observador – não necessariamente filósofo – é levado a extrair os dados transmitidos pelo objeto (fenômenos, padrões de comportamento, circunstâncias da vida e da existência etc.), em primeira mão.
É isto a filosofia no sentido primordial, vista na fonte, na nascente: em nossos dias, a diferença é que, como esse rio metafórico não é contemplado pela primeira vez e nem pelo primeiro homem, cumpre ao filósofo da vez coletar suas observações e cotejá-la com outros filósofos que, antes dele, observaram fenômeno semelhante. Deste cotejamento produz-se o fio de que será feito o novo tecido de conhecimento, por uma conjugação de material preexistente e de novos acréscimos do próprio observador.
Pode parecer complicado, mas esta é a essência da filosofia, a sua base: tanto Bornheim quanto Carvalho concordam, cada qual a seu modo, que disto parte o pensamento filosófico genuíno: do amor, isto é, da apreensão pura, sem intencionalidade prévia de nenhuma natureza.
Com efeito, esse despir-se de si mesmo é bastante difícil à mentalidade moderna, tão refratária e pouco contemplativa. Mas, sem tal disposição obtida mediante algum treino não há conhecimento possível. O que geralmente ocorre é a repetição exaustiva de conceitos pré-fabricados nem sempre adequados a todas as situações que pretendem descrever. (Talvez seja o problema das Humanidades hoje em dia, mas este é outro tópico.)
O amor, aqui, não significa um sentimento elevado ou vulgar, mas uma disposição do próprio espírito, um emprego da mais pura boa vontade do aprendiz interessado em conhecer. Chame ingenuidade, se quiser: ao postar-se diante da fonte mesma do aprendizado, sem reservas nem pré-julgamentos, o observador está entregue, pronto a contemplar o que o elemento observado tem a dizer ou a mostrar, para então aprender com ele. E só posteriormente tecer considerações e análises, depois de reflexão cuidadosa e consulta aos sábios que o precederam. Trata-se, portanto, do conhecimento primordial, e treinar-se nisso requer o ensino dos mestres.
O personagem
Passamos da filosofia ao terreno da literatura, já que ambas guardam uma relação muito próxima. A ficção é criada pelo autor a partir de sua imaginação e sua capacidade de abstrair — e expressar — possibilidades reais ou análogas à realidade circundante. Mesmo quando cria um mundo todo fantasioso e inexistente, este serve de metáfora literária para insinuar ou remeter ao real, numa dupla operação: a fantasia cobre de forma diáfana a nudez de uma realidade, e a verossimilhança se dá por alusão.
Para escrever, o escritor literário dedica-se à observação do cotidiano e depois recorre a uma espécie de baú interior repleto de reminiscências, informações acumuladas, sentimentos por expressar e reflexões cultivadas etc. A operação do autor consiste numa articulação inextricável de experiências vividas e observadas, seja por si e por outrem, e que, de alguma forma, lhe entrou pelos olhos e ouvidos e sedimentou-se na memória. Disso ele pode tirar certas conclusões a respeito, não necessariamente cabais, e arquitetar a sua narrativa.
Ao criar a história, o autor busca nesse baú interior o ferramental necessário ao ao tema de que tratará. A partir disso, desenvolve seu texto e tenta — pois escrever é sempre tentativa e experimento — tenta colocar no seu escrito alguma questão existencial de fundo, algum dilema humano por baixo da história narrada, venha o dilema na forma do drama, da comédia, ou da junção indireta de ambas, a tragicomédia.
Neste sentido, a alma da narrativa ficcional estará centralizada no personagem e no que acontece a ele, no enredo. O caractere que atua na história pretenderá, de forma análoga, reproduzir a pessoa real, de carne e osso, e sobretudo, com alma. Quando concebe o personagem, o escritor não somente recorre ao dom da escrita, mas antes lança mão daquela contemplação amorosa (Carvalho), daquela admiração ingênua (Bornheim) acima mencionadas. Aqui, literatura e filosofia se fundem na produção ficcional.
Diferentemente da biografia, na ficção o personagem não precisa ser uma cópia fidedigna da pessoa real; a partir da idealização dos vários tipos humanos, o autor poderá somar certas características e modos de agir no mesmo personagem, o qual terá verossimilhança se confluir numa unidade, numa integralidade, num todo convincente. Dizendo de forma simples, o personagem deverá parecer de verdade, agir naturalmente, como alguém com quem nos depararíamos na vida real; pense numa Anna Karênina ou num Simão Bacamarte, por exemplo: não existiram realmente, mas poderiam ter existido. Não raro, pessoas reais aludem a personagens literários, e não por acaso.
Este é o poder da ficção: durante o ato da leitura, ela deixa de ser fruto da pura imaginação de um escritor e transcorre como realidade possível, dá a sensação de real. Este “efeito de realidade” se dá tanto pelo bom manejo da linguagem como pela capacidade de convencer sem forçar o leitor a isso, de maneira sutil e natural, como um bebê que é embalado e adormece: um processo suave, tão imperceptível quanto a lei da gravidade que nos abrange agora mesmo.
Sutileza e naturalidade
Há portanto na ficção esse misterioso efeito de se tornar indistinguível do factual no momento em que o leitor penetra na história narrada. Uma vez dentro dela, o personagem bem construído terá uma unidade pessoal apesar de suas idiossincrasias e contradições — defeitos de que todos somos vítimas —, e aliás principalmente por elas.
No limite, o leitor se identifica ao constatar a mesma falha do pecado original — de que é vítima toda a humanidade —, e que agora é manifestada nas atitudes do personagem, desperte ele simpatia, ojeriza ou qualquer outro sentimento humano. A boa literatura de ficção produzirá invariavelmente tal efeito.
Do ponto de vista do ficcionista, trata-se de operação delicada o chamado desenvolvimento do personagem. Se este for um vilão, não poderá ser a pura maldade encarnada, exceto se para efeito cômico; o bom autor não ignora a humanidade transtornada de que é feito aquele tipo errático, problemático, imoral ou monstruoso; e se for o mocinho bondoso (e não bonzinho, outra coisa), o tipo retratado não poderá ser só acerto, virtude, vítima apenas do meio externo e não de suas más escolhas; não será alguém feito de assepsia moral, pois ninguém é assim de verdade, sem nuances nem tropeços. De novo, todos somos pecadores.
De sorte que o bom autor “desaparece” no transcorrer da história como o diretor desaparece no filme: ele está ali, mas não parece que está. O ficcionista não julga o personagem, mas narra os acontecimentos e desenrola as cenas; o leitor dará o seu veredito. Quanto ao autor, ele poderá distanciar-se e olhar o plano geral, depois tecer alguma digressão, mencionar alguma contradição da vida num período ou noutro apenas para situar o leitor no drama. Aqui entra a voz da obra, o fluxo de consciência.
Nesse momento, o ficcionista age como o diretor do filme que mostra o céu azul ou o pássaro a voar antes da ação fatal, como a mostrar ao espectador que as situações mais dramáticas ocorrem não só na agitação, mas também na calma do mundo. E essa estimulação aparentemente contraditória serve ao leitor como exercício à própria imaginação e amplia seu horizonte de entendimento. Quando tal operação ocorre, a ficção cumpre o seu papel.
Discordo!
Um daqueles sinais inequívocos da atual, digamos, falta de inteligência geral, está no verbo discordar. Você vê isso o tempo todo nas redes sociais, uma onipresente discordância disparada como flechas.
Funciona assim: alguém escreve (posta) algo; talvez cite alguém importante, passa uma idéia, alguma afirmação sensata. E mais que depressa surge um ou vários fulanos digitais a brandirem sua bandeirola discordante. Pura chatice.
Uma vício da internet é a falta de, muitíssimo antes de discordar, compreender uma mensagem.
Devia ser proibido discordar antes de compreender. Sim: feito um Alexandre de Moraes sem regalias eu proibiria a discordância, porque sim, porque eu quero. Depois da devida compreensão textual, conversamos.
Certo, também não chega a tanto, proibir. Diferente de um Moraes, tenho cabelo e argumentos: é que essa discordância digital, à guisa de batata-quente, não passa da inabilidade em estranhar. Isso. As pessoas têm medo de estranhar, de encontrar algo inusual e, ao estranharem, olhar com mais calma, procurar entender um pouquinho. Ortega y Gasset dizia que “estranhar é começar a entender”.
Mas não: ao ver ou ler o atípico, o incomum, depressa o chutam longe, atiram a batata-quente a arder as mãos dizendo “discordo!”. E fecha-se a tampa. A discordância, aqui, é mais um ai de dor e não um contraponto. Não houve tempo de contrapor, o que exigiria reflexão e, antes disso, compreensão.
Penso que o jeito certo de ler, ouvir e ver qualquer coisa foi há muito ensinado pelo apóstolo São Paulo, de um jeito simples e eficaz: examinar tudo, reter o que é bom. Está em 1 Tessalonicenses, 5:21.
Não é um bom conselho? Então respire: não vá discordar do santo apóstolo, pelo amor de Deus.
Qualificação
Uma vez um amigo me ligou dizendo “pintou uma vaga aqui, vou te indicar.” Ele trabalhava na Istoé, mais precisamente na revista Dinheiro. Agradeci a indicação, claro, e dali a uns dias me liga o diretor da revista e marcamos uma entrevista. Fui à Istoé.
Aquela era a segunda vez em que pisava naquele velho galpão de tijolos ingleses, bem em frente à estação de trem da Lapa, zona oeste de São Paulo. Aliás, foi o galpão da editora Três (que publica a Istoé) que me inspirou a descrever o cenário do conto O ringue (link abaixo).
Tinha estado lá numa outra oportunidade. Foi em 2001, foi quando outro amigo me convidou para conhecer a redação. Ele era estagiário de jornalismo na Istoé. Aquele era amigo de fé e irmão camarada, e a gente se frequentava pra valer, de conhecer a família. Tempos depois, ele assume a direção do jornalismo da Record e depois abre a CNN Brasil. Agora, ouço dizer que está a trazer a gringa CNBC pra cá. Rapaz... melhorou um bocado esse meu amigo, com quem perdi o contato há muito tempo. Eu o incentivei a ir para a tevê, ele que tinha um medo danado de câmera. Acho que perdeu o medo, pelo jeito.
Bem, mas voltando à entrevista. Conversei, mostrei portfólio, fiz teste. Tudo nos conformes. Na hora, a resposta foi a de sempre, “ok, aguarde e qualquer coisa te chamamos.”
E não é que o diretor da revista me ligou? Eu fiquei empolgado. Mas ele, cordato, apenas deu-me o famigerado feedback para dizer que a vaga fora preenchida. Perguntei a ele o motivo de eu ser preterido “para me preparar melhor em outras oportunidades” (o escambau; estava p da vida, mesmo), e ele me diz, protocolar, “sabe, você é bom, mas não tem qualificação.”
Estranho. Ser bom e não ter qualificação? Perguntei a ele. “É, você não tem diploma, sabe?”
Na época eu não tinha mesmo. Fiz Desenho Industrial e tranquei a matrícula. Depois, Administração. Tranquei. Era diagramador há anos, mas não tinha o papel dourado para exibir, entende? A qualificação.
Bem, por causa disso tive de voltar ao maravilhoso ensino superior brasileiro, a fim de obter a requerida qualificação. E lá fui eu. Tempos depois, podia demonstrar a minha Qualificação, empunhar a Qualificação, brandir a Qualificação, muito embora já fosse qualificado. Mas isso não conta.
Dias depois, o amigo que me indicou me liga perguntando o que aconteceu. Expliquei: o diretor alegou que eu não tinha qualificação, o outro nome do diploma. Perguntei a ele quem ocupou a vaga, e ele disse “ah, uma menina lá.”
“E ela manda bem no serviço, é qualificada?”, perguntei, candidamente.
“Sei lá”, disse meu amigo. “Mas o diretor achou ela bem gostosa e contratou. Quer pegar ela de qualquer jeito.” Qualificação.
Quem disse
“Parece que o gênio de ordem mais elevada vive uma constante hesitação, entre a ambição e o desprezo da ambição. Nas grandes inteligências, a ambição é apenas negativa. Luta, trabalha, cria, não porque seja desejável ultrapassar os outros, mas porque é insuportável ver-se ultrapassado, quando se tem o sentimento da capacidade de não o ser. Não posso impedir-me de pensar que os maiores espíritos, os que mais consciência têm da vaidade das gloríolas humanas, se contentaram em permanecer mudos e desconhecidos.”
— Edgar Allan Poe
*
“Meu pequeno estúdio nunca foi profanado por um trabalho superficial, febril, mercenário. É um templo do labor, mas também da calma. A arte é longa. Se estamos trabalhando em nosso próprio interesse, é claro que vamos ter de correr. Mas se trabalhamos por ela, frequentemente uma pausa é necessária. A arte sabe esperar.”
— Henry James
*
“Só um boçal considera pecado e moralidade como conceitos opostos. Eles formam apenas um. Sem o conhecimento do pecado, sem o abandono ao que é funesto e nos consome, toda moral é uma afetação de virtude.”
— Thomas Mann
Bibliografia e links
¹ BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: O pensamento filosófico em bases existenciais. 11. ed. São Paulo: Globo, 2003.
² CARVALHO, Olavo de. Da contemplação amorosa. Olavo de Carvalho | Website Oficial, 1995. Disponível em: https://olavodecarvalho.org/da-contemplacao-amorosa/. Acesso em: 27 set. 2024.
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