#29. O ringue
Cenas fortes no conto a seguir. Recomenda-se cautela aos leitores mais sensíveis
A COMPOSIÇÃO DESPEJAVA AS TRABALHADORAS, às centenas, em horário comercial. Apressadas, elas desembarcavam afoitas, com mochila ou bolsa atracada ao corpo e aglomeravam-se em frente às escadas de saída. Nos semblantes, a impressão de uma vida de suplícios para faturar algum dinheiro.
O bairro da estação final era repleto de galpões com tijolos aparentes, todos castigados pelo tempo e escurecidos pela fuligem e a poluição; construções que remontavam ao início do século passado, de tijolos ingleses, muito resistentes. Diversas fábricas funcionaram ali, onde hoje companhias de telemarketing alugavam a bom preço aqueles paredões arruinados.
Embora exibissem por fora um visual decadente e de certa forma hostil, por dentro havia tecnologia de ponta e ótima estrutura naqueles locais. Todos os que visitavam os galpões de call center diziam como fachada e entorno apenas enganavam a vista, e que bastaria entrar para conferir as modernas instalações, todas bem adaptadas sob o fortíssimo frio do ar condicionado.
Além disso, diferente das escaldantes fundições de outrora — todas então dominadas por machos da espécie —, agora o que se ouvia não era mais o martelar nas bigornas mas o tlec tlec dos teclados e o coro feminino; uma população de moças perfilava-se nas baias dispostas em fileiras enormes. Uma parte atendia aos clientes queixosos dos bancos e outra parte oferecia empréstimos a aposentados – único corte da população a manter telefone fixo em casa e a levar a sério a oferta das moças. Ainda um bom negócio, com efeito.
As atendentes provinham das rebarbas da cidade e praticamente todas eram mães, muito embora só uma ou outra fosse casada, sobretudo as crentes pentecostais. As demais tinham filho e um certo pai do meu filho de quem costumavam reclamar.
Às cinco em ponto, elas deixavam os galpões. Exaustas, partiam novamente à estação final, sempre a desabafar no caminho indignações contra as chefes perfumadas e de salto alto que iam de carro para casa. Algumas se consolavam e compravam um pequeno prêmio para coroar o dia: um pacote roliço de biscoito recheado sabor morango ou chocolate. Mastigavam o petisco no vagão e alternavam reclamações e piadas internas, disparando resíduos da massa triturada na boca, os quais choviam sobre passageiros sentados. Elas se desculpavam pela distração (ai, desculpa moço); não obstante, não se esqueciam de levar um pacote a mais ao filho que aguardava junto a avó, lá muito longe onde moravam.
Eis a rotina do velho bairro fabril, de segunda a sexta em horário comercial. Mas havia um daqueles galpões que recebia outra leva de trabalhadoras no período noturno. Não muitas, é verdade, e há certa indelicadeza em descrevê-las fisicamente; porém, faz-se necessário para o entendimento do que virá adiante, pois o padrão das fisionomias chamava muito a atenção.
Tratava-se de moças robustas e fortes, umas muito fortes, enormes: uns quadris em redoma, uns braços parrudos e troncos atarracados. Outras eram altas, com pernas compridas e cabeleira florestal. Todas com cara de poucos amigos — embora fossem amigas entre si e andassem aos pares: desembarcavam no início do anoitecer e dirigiam-se ao branco.
Branco era apelido: referiam-se à cor do único galpão deste matiz, que ficava no fim da quadra principal, o último da rua anexa à estação. Àquela hora, de noitinha, os demais galpões estavam fechados para reabrirem apenas na manhã seguinte. Não o branco, que funcionava após o expediente regular e recebia as outras trabalhadoras, daquele jeito e naquele padrão.
Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Não só pelo pouco movimento de populares mas, ora essa, eram galpões de telemarketing: se moças ali chegam com bolsas e mochilas e adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.
Do outro lado do galpão branco, oposto à entrada de pedestres por onde as moças entravam, ficava o estacionamento. Já era noite quando furgões na cor branca e sem identificação encostavam ali. Os utilitários tinham aquelas janelas apenas na frente para motorista e ajudante. Chegavam e buzinavam, apressados. O porteiro oculto na guarita fumê abria e liberava a passagem. Os veículos desciam à garagem subterrânea enquanto o enorme portão de aço se fechava, ruidoso. De novo, tudo normal: no início da noite os carros de entrega são recolhidos às firmas; alguns se atrasam devido ao trânsito e à distância de onde retornam, naturalmente.
Somente por volta da meia-noite, quando a estação final estava prestes a fechar, as moças robustas retornavam a casa. A maioria parecia se banhar ainda no galpão branco, pois o vagão vazio era inundado pela mistura dos cheiros de xampu a evaporarem das cabeças.
Dada a nova natureza do bairro, ninguém estranhava nada. Ora, galpões de telemarketing: se moças chegam com bolsas e mochilas e ali adentram, qual a estranheza? Muitos call centers funcionam além do horário, alguns por 24 horas.
2
O branco funcionava todas as noites, exceto aos finais de semana. Nas sextas, uma empresa terceirizada de manobristas organizava um cinturão na quadra do galpão, posicionando setas e placas indicativas em pontos estratégicos.
Então, carros de luxo encostam e são recebidos por manobristas à porta, que abrem gentilmente para damas e cavalheiros. O motorista da vez deixa a chave do bólido de um jeito desdenhoso e arrogante. Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se travasse uma conversa despretensiosa.
Lá dentro, os convidados são conduzidos aos seus lugares. Há camarotes vip para sócios e toda a disposição das cadeiras é circular e dividida em setores, e nos corredores moças longilíneas conduzem os que chegam. Por dentro, o galpão branco é uma arena. Quem olhasse de fora jamais poderia supor.
Todos acomodados, uma imponente voz feminina anuncia as lutas da noite no alto-falante. Destaque para a última, com as principais lutadoras do evento. As luzes giram pela nave escurecida. No centro e no alto, quatro telões exibem cards com as lutas da noite, os nomes e os rostos das combatentes.
No centro iluminado está o ringue em formato octogonal. Antes do match, a tela exibe o logotipo do principal patrocinador do evento, um banco simpático cujo slogan é “mudar o mundo”.
De repente, as luzes se apagam: tudo escuro. Depois, piscam frenéticas como raios multidirecionais. Em seguida, apagam-se de novo, suspense imediato. Retorna uma iluminação vermelho-sangue, e o galpão se avermelha completamente. Apaga. Depois, um facho branquíssimo de cegar surge do alto, bem ao centro do ringue. Há um garoto franzino, quase fantasmagórico sob a luz. Pesa 50 quilos no máximo e aparenta ser adolescente, uns dezesseis anos. Traja uma cuequinha e meias escolares.
A narradora anuncia as lutadoras do primeiro confronto da noite. Elas vão ao ringue. A juíza autoriza “lutem” e elas partem, giram pelo octógono. A primeira desfere um cruzado de esquerda no garoto, que não vê o golpe: vai estonteado às cordas, trança as pernas mas não cai completamente. A segunda o surpreende e desfere um murro na região do fígado antes que o garoto recobre o equilíbrio anterior. Ele tomba em posição fetal. A narradora grita o nome das lutadoras e a plateia vai junto, vibra, assobia.
O menino se ergue e hesita, quer reagir mas teme, algo o impede. Evita bater em mulher, como se a voz da mãe ressurgisse na mente, um eco distante. Decide apenas se proteger com os antebraços. A primeira lutadora puxa seu bracinho franzino e o traz ao centro do ringue. A segunda se atraca a seu pescoço e o sufoca contra os enormes seios.
“Assédio! Assédio!”, grita a plateia, como se pedisse pelo golpe a seguir. Uma lutadora vem pelas costas do rapazinho e lhe desfere um chute de coturno, em cheio. Suas costas claras exibem a marca da sola à luz. Cai de frente. Tenta se erguer. A outra lutadora senta em suas costas e diverte-se, domina-o pelas orelhas. A juíza a repreende, manda se afastar. O garoto tomba no tatame, rendido. A juíza conta até dez e a primeira luta está encerrada.
“O homem perdeu! O homem perdeu!”, grita a plateia. Soa o gongo.
Os convidados trajam-se com elegância, mas uma elegância vagamente hostil em vez de sofisticada. Curioso. Não pareciam pessoas lá muito simpáticas ou charmosas com quem se quisesse travar uma conversa alegre e despretensiosa.
3
Segunda luta da noite. São duas capoeiristas de ossatura robusta, altas e magras. Usam um traje branquíssimo composto de calça de algodão cru e camiseta cropped com cortes rústicos. Uma corda preta ata a calça à cintura. As duas se assemelham a uma dupla de percussionistas de axé music.
No centro do octógono empurram um rapazinho de seus dezessete anos, ruivinho, daqueles que existem graças à variabilidade genética nacional. O jovem parece apreensivo na cuequinha de helanca com abertura frontal, peça única que trajava.
A locutora diz os nomes e anuncia o início da luta, faz efeito com a voz. A plateia vibra, grita, assobia alto e prolongado. Embaixo do ringue, um sujeito alto e corpulento com cor de azeviche começa a planger um berimbau com chocalho, ao que imediatamente as duas, depois de um cumprimento de santo, começam a gingar, perna pra lá, braço pra cá, vem e vai.
Elas dançam em sincronia em volta do garoto. Um pé passa rente ao rosto do menino, golpe de ar que o assusta. Se esquiva por reflexo: desvia-se de um lado e vem susto de outro, passa perto; a segunda capoeirista é ágil e ele desvia, se atrapalha. As duas giram e gingam, circundam, confundem, o impedem de sair da roda. Ele esboça um passinho e leva uma rasteira humilhante. “Caiu de bunda!”, a locutora descreve, para delírio da plateia.
O garoto se levanta e assume uma frágil posição de defesa, arqueando as costas e levantando os punhos, como nos filmes. Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino. Ele urra surdo e vai para trás em direção às cordas. O berimbau continua, mais forte e mais rápido, como a ensejar mais ação e movimento.
A segunda sacoleja a cabeleira e dá três estrelas em sequência; na última, baixa com um dos pés a minúscula peça de roupa do garoto que, envergonhado, encobre a genitália com os antebraços. A primeira faz um símbolo com o indicador e o polegar da mão direita, como se indicasse algo pequeno. A plateia gargalha. O garoto vai ao canto do ringue e se encolhe, como a tentar se esconder e esquecer que está ali.
A dupla recebe uma punição pelo golpe proibido e está encerrada a segunda disputa da noite. São desclassificadas. Humilhado, o garoto não se mexe. Permanece agachado, quando um braço imenso o puxa com força desproporcional pelas pernas e o retira por baixo das cordas. O menino berra um ai de dor e a plateia ganha um bônus: gargalha com alguma piada da locutora, um chiste rápido que mal se pôde entender. Talvez ela não devesse dizer aquilo, mas não se conteve.
No fim, outro homem perde. Soa o gongo.
Uma olha a outra, já sabem o que fazer. A primeira gira a perna direita sobre a esquerda, atira o corpo para trás e dá um salto acrobático. A plateia aplaude e assobia alto. A outra puxa um rabo de arraia e atinge o garoto no meio do peito franzino.
4
Na principal luta da noite, as duas lutadoras retiram o manto brilhante e acetinado que as envolve: são Lady B e Mel Massa. Elas sobem ao ringue num pulo e se penduram nos postes: exibem fluorescentes collants como num telecatch: não se sabe a arte marcial que cada uma domina, mas, pelo porte, é fácil presumir que qualquer golpe viria forte e contundente.
Desta vez, os seguranças corpulentos jogam dois garotos ao invés de um só, mesmo padrão: brancos e magrelos, de cuequinha. Parecem meninos de condomínio. A narradora faz questão de anunciar a maioridade dos dois, embora fosse difícil concluir isso à mera olhada. Mas a voz no alto-falante diz aquilo em tom sério e preventivo, como um disclaimer, talvez para não melindrar o sério banco patrocinador cuja marca era estampada nos telões.
Lady B e Mel Massa percorrem o ringue para serem vistas por todos os ângulos. São aplaudidas, aclamadas, ovacionadas. Elas inclinam a cabeça em agradecimento, estalam o pescoço, esticam os braços: profissionais. A luta promete, e elas sabiam que o público aguardava por elas, afinal. Soa o gongo, a juíza diz “lutem” e Lady B dá um salto rápido: atinge um dos rapazes com os dois pés no alto, entre o queixo e o pescoço. Com a cabeça jogada para trás o menino cai sobre o outro enquanto Mel Massa toma distância e se atira por cima de ambos num estrondo. A plateia delira, urra, assobia. O telão central exibe um replay do golpe em câmera lenta. Sincronia perfeita das duas.
O outro garoto parece mais ousado e se ergue. Gira um pouco pelo tatame como se dissesse “não será tão fácil”. Lady B apenas anda e o espreita. Sabe que ele não terá escapatória. O show esquenta. Enquanto isso, Mel Massa aplica uma gravata no menino de cabelo liso, e as veias de sua testa dilatam-se: quando fecha os olhos desacordado, ela o larga ao chão como um pacote inútil. A juíza paralisa e conta até dez. Sem chances. O jovem é puxado pelo segurança, rápido.
A plateia vaia o garoto vencido e fica em êxtase, catártica. A luta recomeça. As duas caçam o rapaz remanescente, que tenta uma ginga ridícula. Sua imagem naquela cuequinha frouxa lembra uma comédia pastelão.
Lady B consegue puxar o elástico da cuequinha, e o rapaz, rápido, recolhe-se por reflexo, esconde a nudez: ela então pula de costas e lhe atinge a têmpora direita com o cotovelo para em seguida Mel Massa cair sobre ele como um piano. Rápido esta sai e gira pelo octógono, recebendo a aclamação da plateia. Lady B nota estar em baixa no ranking de golpes e que a plateia não a aplaude muito, então decide girar com a perna esquerda e acertar com o calcanhar a mandíbula do jovem. Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.
Embora em dupla, as duas lutadoras não pareciam muito unidas como as anteriores. Ao contrário, cada uma queria superar a outra e se consagrar sozinha perante a plateia. Então, vendo que Lady B consegue a façanha de arrancar um dente ao garoto, Mel Massa gira em torno de si mesma como um pião e aplica um chute certeiro na tíbia esquerda do rapaz. Ele tomba de imediato. Ela percorre o octógono como quem pergunta “e então?”, e recebe assobios e gritos eufóricos.
O jovem está caído. A juíza hesita, não vai contar. A plateia silencia por um instante. A câmera de cima mostra o garoto estirado com a perna de um modo estranho, invertida. As duas ainda giram pelo ringue em direções opostas e recebem alguma aclamação, embora mais tímida. Elas não se olham nem se cumprimentam.
Finalmente a juíza se aproxima e faz a contagem. A tela exibe em letras garrafais “homem derrotado!” e a música sobe, junto com os raios de luz.
O segurança puxa o rapazinho com toda a força por baixo da corda e este urra com dores excruciantes. O som alto não permite ouvi-lo, entretanto. Pendurado às costas do segurança, a tíbia esquerda pende e balança, mole. O garoto sai aos berros.
Algo voa de sua boca, além do esguicho fino e escuro: um dente. Agora a plateia a aplaude furiosamente e é sua vez de girar no octógono, triunfal, sob os rompantes da locutora.
5
Luta terminada, as duas lutadoras recebem o cinturão. São aclamadas, mas em momento algum se olham ou se falam. Cada uma está ali por si mesma.
Quando descem do ringue, um sujeito da plateia surge repentinamente e aplica um soco às costas da Mel Massa, que se desequilibra e cai. Rápido o segurança cor de azeviche o arrasta e o leva embora para local desconhecido, apertando os braços enormes contra seu pescoço. Uns passos à frente e o sujeito já parece inconsciente.
Lady B ampara Mel Massa, pergunta se está bem. Ela diz que sim, está; mas Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.
“Quero a identidade desse cara, pega aí na carteira dele”, ordena ao segurança corpulento. Ela tira o smartphone do macacão e o utiliza para fotografar a cara do agressor. Enquanto isso, vídeos filmados pelos presentes chegam via aplicativo, documentando a súbita agressão a Mel Massa.
Lady B insiste que aquilo não podia ficar assim. Vai atrás do sujeito.
6
Na semana seguinte, chegam as trabalhadoras ao galpão branco, à noitinha, após o horário comercial. Estão trajadas como qualquer atendente de call center, mas vieram ali para treinar. A semana transcorre normalmente e sem surpresas.
Na sexta-feira, dia da luta semanal, chega um furgão ao galpão. Dele desembarcam motorista e segurança. Do interior saem duas moças longilíneas em trajes sumários, loiras e lindas, que faziam o papel de hostess nos dias de luta. Após elas, desembarcam uns adolescentes uniformizados de colégio. Um deles pergunta “onde é a balada”. Outro, mais afoito, passa a mão no cabelo da segunda modelo e a elogia de “muito gata”. As duas eram iscas.
As beldades os conduzem a uma salinha escura cheirando a mofo e com luz mortiça. Os seguranças os obrigam a ficar “só de cueca”, dizem. Os garotos ainda riem, acham graça. Imaginam alguma aventura amorosa dali a pouco, a primeira da vida. Chegam as lutadoras para o aquecimento e pulam corda no tatame. Enquanto o evento não inicia, os garotos permanecem reclusos, vigiados pelos seguranças. As loirinhas não aparecem.
Lady B e Mel Massa não vieram lutar hoje. Ambas foram chamadas à delegacia da mulher para reconhecer o agressor capturado pela polícia. O vídeo da agressão foi exibido à delegada que, indignada, ordenou a prisão do sujeito em flagrante. Emocionada, Lady B abraça Mel Massa. Aos prantos, ambas comemoram a prisão do homem violento.
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