CORRESPONDÊNCIA, CARTA, EPÍSTOLA: tão importante foi este meio de comunicação que, sem ele, não haveria o Cristianismo tal como o conhecemos. Em grande parte, a religião cristã foi fundada por meio da comunicação epistolar. Os santos apóstolos — São Paulo em especial — enviavam cartas a diferentes comunidades cristãs espalhadas pela Grécia, Ásia Menor (que compreende a atual região da Turquia), e mesmo ao centro do mundo de então, Roma. Por meio delas, os apóstolos fortaleciam os adeptos da nova fé e estabeleciam os marcos da nova religião nascida há poucas décadas na Judéia.
As cartas tiveram um papel preponderante ao longo da História. Por elas, guerras iniciaram e guerras terminaram. Via carta — mensagens escritas em papel, o que incide numa fragilidade material evidente —, o destino de populações inteiras foi selado, para o bem e para o mal. A confiança depositada na compreensão de uma mensagem escrita em carta pressupunha outras confianças anteriores, como a devida chegada às mãos certas, e depois, a leitura cuidadosa da correspondência. Cartas tinham um peso documental impressionante e, desde tempos remotos, a sua inviolabilidade — malgrado a facilidade mesma da violação — era considerada uma infâmia, uma covardia e até um crime capital.
Falamos do Cristianismo, mas a correspondência epistolar remonta a muito antes. Por exemplo, Sêneca (Lúcio Aneu Sêneca, 4 a.C - 65 d.C.) utilizava aquele meio para se comunicar com os discípulos. O maior deles foi Lucílio, que recebeu da juventude até a maturidade as correspondências do mestre estoico, orientando-o em cada situação da vida, sempre de acordo com a escola filosófica e mesmo com a sabedoria pessoal do mestre.
Outro exemplo foi Ovídio (Públio Ovídio Nasão, 43 a.C. - 17 d.C.). Ainda na juventude, o poeta foi condenado ao desterro pelo imperador Augusto, por motivo não declarado. Expulso de Roma, o poeta foi degredado para terras ermas, distantes da capital do Império, de onde escreveu centenas de cartas a amigos e conhecidos, ora em tom lamentoso, ora em tom filosofal, ou um misto de ambos. A reunião destas cartas compõe o volume intitulado Cartas Pônticas.
Coração no papel
De modo geral, a modernidade enseja uma insensibilidade e até um desprezo aos ritos e símbolos, dos mais simples aos mais significativos. E, num ponto intermediário da distância compreendida entre simplicidade e significância, o ato de escrever cartas — malgrado o fato de estar disponível a cada indivíduo alfabetizado agora mesmo —, praticamente se perdeu.
Não só o hábito em si esvaiu-se à medida que a comunicação se tornou eletrônica e etérea, mas a importância inerentes ao ato de se corresponder também se foi: valores como consideração, estima, respeito ao outro. E, nesse processo, perdeu o indivíduo em particular e a própria humanidade em sentido amplo.
Longe de ser bobagem, em que implica a escrita de uma carta? O que está implicado em, digamos, sentar-se diante do papel e usar a caneta para externar os pensamentos?
Em primeiro lugar, o ato em si mesmo enseja uma busca pela melhor forma de dizer o que se pensa. Quanto aos sentimentos, a escrita de uma carta força a expressão daqueles em palavras, de modo que tanto mais o destinatário sentirá o que diz o remetente quanto mais precisa for a escolha das frases e períodos. Um tipo de disciplina, no fim das contas. Não seria absurdo dizer que, se a alfabetização desse ao cidadão somente a possibilidade de escrever uma carta, já teria valido a pena.
Há também a questão interior, subjetiva. Se alguém escreve a carta, a envelopa, endereça, vai ao correio, paga selo e postagem, enfim; vai nisso tudo não apenas a trabalheira envolvida (o que decerto um bobalhão diria) mas não, justamente esse processo aparentemente complicado faz com que a escrita demande uma entrega de si. Evidente: quanto mais trabalho envolvido, mais valor devotado ao produto do trabalho.
Diferente da correspondência profissional ou burocrática, a carta comum de pessoa a pessoa envolve uma condensação de sentimentos despejados no papel, o que é, em larga medida, benéfica à alma. Não raro, nosso espírito é levado a se confessar na escrita, naturalmente; e nisso as máscaras são removidas e nos enxergamos por dentro. Por escrito, a sinceridade emerge, e a expressão verbal passa a valer em dobro.
Cartas e literatura
Um conjunto tão grande de predicados faz da epístola um gênero literário à parte. Para além das cartas bíblicas e dos mestres da Antiguidade, o gênero epistolar é tradicional na ficção. Além disso, sempre esteve presente na comunicação pessoal dos escritores, a qual em parte temos acesso hoje, quando publicadas em livro.
Na ficção, talvez o gênero epistolar mais famoso seja a novela Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe (1774), ao lado de As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos (1782). Fora da ficção, destacam-se as cartas do poeta austríaco Rainer Maria Rilke ao aprendiz Franz Kappus, condensadas no clássico Cartas a um jovem poeta.
Também importantes são as cartas de Flaubert à escritora George Sand (pseudônimo de Aurore Lucile Dupin), a respeito de sua escrita. Outro destaque é a correspondência — mais de cunho pessoal e menos do fazer literário, por assim dizer — do escritor americano Henry James ao escocês Robert Louis Stevenson e vice-versa, ambos de fins do século XIX. Há ainda as cartas de Tchekhov ao irmão Aleksandr, além das famosas cartas de Van Gogh ao irmão Theo, dentre muitos exemplos.
No Brasil, o maior contribuinte ao gênero epistolar certamente é Mário de Andrade. O modernista correspondia-se com pares e não-pares, especialmente Carlos Drummond de Andrade. Essas cartas estão reunidas num volume intitulado A lição do amigo: ali, um maduro Mário de Andrade relata as vicissitudes do ofício e do dia a dia, além de dar dicas ao jovem poeta e amigo Drummond.
Clarice Lispector também tinha o costume de se corresponder, e muito. Nas suas cartas, nota-se mais a doçura da mulher, mãe, amiga e até da dona de casa, para além da epifânica e misteriosa escritora de olhar oblíquo que sua expressão evocava.
Voltando a Drummond, o poeta além de tudo respondia até a cartas de leitores, famosos ou anônimos, que tinham a sorte de descobrir-lhe o endereço e comentar suas obras. O poeta datilografava, envelopava, selava e postava no correio respostas a muitos de seus leitores. Alguns deles eram brindados com poemas exclusivos, especialmente no finzinho da carreira do escritor. Difícil saber se aqueles destinatários sabiam o valor da correspondência que recebiam.
Maquininha de moer cérebros
Hoje em dia, a presente disponibilidade de meios de comunicação ultrapassa a própria necessidade de comunicação. Do recadinho à notícia importante, da piadinha infeliz à nota de falecimento, os aplicativos de mensagem instantânea, presente em cada mão via smartphone, têm banalizado ao extremo a necessidade de meios para falarmos uns aos outros.
Por estes aplicativos — de resto, projetados para viciar —, a comunicação tanto se amplia em quantidade quanto se esfarela em qualidade, enquanto luzes e cores emitidas das telinhas seduzem os olhos incautos. Curiosamente, são os fãs ardorosos do aparelho que desdenham mais do papel-e-caneta de que tanto necessitam, sem saber.
Especialistas têm apontado os males que a exposição a telas causa na saúde mental e psíquica das populações, especialmente nas crianças e jovens já nascidos sob a hegemonia das telas. A onipresença do smartphone e seu consequente uso irrefreado tem servido como uma maquininha pessoal de moer cérebros e apagar neurônios.
Num Brasil onde até há pouco linha telefônica era uma propriedade a se declarar em imposto de renda, escrever à caneta numa folha de caderno sempre pareceu pouco requintado. Redigir uma carta não passava de opção barata para se comunicar com gente distante, ou seja, coisa de pobre: é possível que venha daí esse atavismo a qualquer novidade eletrônica em contraposição ao analógico de sempre. Um status jeca e quimérico que os países desenvolvidos não têm. No ultratecnológico Japão, fabricam-se os melhores papéis. Na moderníssima Alemanha, as melhores canetas.
Para além de alertas de especialistas, nota-se um efeito deletério na comunicação das pessoas — para além das alegadas rapidez e praticidade — ao comparar a mensagem instantânea com a correspondência tradicional: para se escrever uma carta, havia a típica lentidão na escrita, o pensar nas palavras, o reler das frases, a mínima complexidade dos períodos. Ora, tudo isso aumentava a própria inteligência do escrevente, sem este perceber. Obrigar-se a escrever e a argumentar forçava a uma clareza do pensamento, e, antes disso, a uma pausa entre uma sentença e outra. Justamente essa pausa salutar, essa escolha e até a renúncia em dizer algo leviano de ímpeto, o smartphone simplesmente destruiu. O smartphone piorou o nosso cérebro.
Por outro lado, não só a escrita mas a leitura das cartas representava, veja só, alguma leitura. E uma leitura — ainda que mínima — levava a mais leituras de modo lento e sedimentar: um jornal aqui, uma revista acolá... um livro, finalmente. Já o smartphone e seu indissociável uso permanente enganam o cérebro enquanto este pensa que lê e pensa que escreve: quanto mais os usamos, menos compreendemos sentenças mais complexas e raciocínios mais elaborados. Os estudos comprovam.
Passo à primeira pessoa. Cheguei a presenciar o uso corrente das cartas e resposta a cartas em minha família e, se me permitem, hoje considero uma sorte ter conhecido a atividade. Minha mãe escrevia à minha avó e vice-versa: toda quinzena, pelo menos, o carteiro trazia uma cartinha que depois era respondida e postada no correio por minha mãe. Em minha casa, mandar e receber cartas foi algo comum nos anos 80 até meados dos 90.
Depois, com telefone ofertado e ampliado via privatização, a coisa foi mudando. Nos últimos anos, o smartphone com plano de dados passou de roldão sobre um costume que não precisavam acabar e, mesmo na família, as cartas foram trocadas pelos inescapáveis balõezinhos do WhatsApp. Minha família também foi atingida.
O que fazer
Bem, o ideal seria retomar a escrita de cartas. Mas isso sem disposição hipster, com sinceridade; sem a intenção de ser qualquer experiência vintage e postiça. Contudo, talvez seja difícil dar esse salto tão grande ao passado. Por outro lado, embora eletrônico, o e-mail não é tão deletério quanto as detestáveis mensagens instantâneas de WhatsApp e cia. Este recurso pioneiro da internet jamais caiu em desuso, embora seja um bocado negligenciado. De novo, injustamente.
Além disso, o óbvio: ler e escrever mais em papel. Recusar a suposta facilidade das telas, ao menos tão ostensivamente. Caneta e papel, ao contrário do que supõe um lamentável senso comum, continua a dar as caras de modo bastante simpático. Hoje, inclusive, com certa sofisticação: há um retorno lento a diários e ao registro por escrito de pensamentos e sentimentos, que podem ser compartilhados ou não. Existem no mercado um sem-número de journals — cadernos especiais para diários ou para a hora de escrita dedicada, à mão.
Não se trata de forçar o uso antigo em detrimento do (não tão) novo, mas de priorizar o importante ao desimportante, o salutar ao insalubre; também não se trata de um apelo contra a tecnologia em si, mas a um consciente desdém a ela (sim, desdenhemos a tecnologia, não é pecado), compensando-a com gestos físicos e concretos. Algo que envolva corpo e mente, pensamento e registro do pensamento, tudo no papel. Se preferir, em papéis especiais, para dar um tempero.
E até escrever cartas novamente, por que não? O jovem já experimentou receber uma cartinha endereçada a si, em seu nome, escrita à mão por alguém de verdade? Recomendo a sensação. Depois compare com uma desprezível notificação instantânea numa tela e a mini-síncope que o barulhinho da notificação proporciona. Não tem nem comparação.
A crítica ausente
Falta crítica literária e faltam críticos literários. Mas haverá hoje em dia um crítico literário realmente sincero?
Certo, a literatura dita contemporânea merece surra e bordoada, mas isso é como aquela frase que invento agora, chover no molhado. Bater na literatura contemporânea — embora merecido — não deixa de ser clichê, fácil de fazer; como dizer “chover no molhado”.
Assim, o crítico não se sinta lá muito sublime por pegar um romancinho de 80 páginas todo escrito em estrofes a cada página e, ao descer-lhe umas sabugadas, sair por aí achando-se muito zelote das boas letras.
O ponto é outro. Haverá hoje em dia um bom crítico em tempos de rede social? Pois defeito na literatura atual todos apontam, mas e quanto à crítica literária atual? O primeiro defeito desta, de saída, está na negligência, no faltar ao serviço.
Um crítico literário devia sê-lo por amor à literatura e, por profundo respeito a essa arte a qual conhece bem, ele aplicará suas análises. Porém, haverá algum crítico ou crítica que, em tempos de redes sociais, não queira fazer suas defesas e ataques antes de tudo para construir ‘autoridade’ no sentido do marketing digital? Haverá algum crítico cuja crítica seja realmente confiável, não viciada em certos interesses de turma e número e tipo de seguidores?
Pode haver alguns, como hipótese. Mas, se fosse para arriscar, eu não saberia nenhum nome.
Cadê elas?
Onde foram parar as mulheres de lenço na cabeça? O Brasil já foi o país de mulheres com lenço na cabeça. Herança lusitana, talvez. Minha mãe usava e minhas tias usavam. Com bobes e sem bobes. Uma tia usava com bobes: deixava as mechas todas bem presinhas com um milhar de grampos (que vinham em caixinhas, aos milhares), e ela preparava os cachos para um grande momento no futuro próximo: o grande momento de tirar lenço e bobes e dar ao mundo a moldura capilar tão cuidadosamente preparada.
E o tal momento sempre chegava: corriam os anos 1980, e o casamento hétero ainda existia. Ao menos um casal de nubentes por mês incluía minha tia entre as testemunhas do enlace diante de Deus e dos homens, quando ela então podia desatarraxar os muitos rolinhos de plástico multicores, desprender os milhares de grampos, e dar ao mundo suas madeixas pendentes, brilhantes e balouçantes.
Havia dois penteados possíveis nesta solenidade de tirar lenço-e-bobes: um positivo (com as madeixas em caracol apontando para fora), e o negativo (com as madeixas em caracol apontando para dentro). Minha tia preferia o modo negativo. E hoje não se vê mais nem um nem outro.
Oh, rósea jovem que caridosamente me lê, relançai o hábito do lenço. E relançai o matrimônio hétero diante de Deus e dos homens.
Quem disse
“O que os outros pensavam de mim permanecia uma obscura consideração, uma vez que os outros me pareciam espantosamente não enxergar nada, além de não ter curiosidade, enquanto eu ansiava por aprender tudo: a exasperante diferença entre mim e todo mundo que eu conhecia até então. Eu tinha certeza que havia uma multidão de pessoas como eu, em algum lugar.”
— Susan Sontag
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“A natureza estremece de prazer quando o espírito se curva em adoração perante a beleza.”
— Thomas Mann
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“Onde o pensamento não tem lugar, a justiça e a prudência tampouco.”
— Simone Weil
Direto do almoxarifado
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Entrevista com moradores do Rio (1977)
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Aprendi no aos 9 anos a escrever cartas. Minhas cartas sempre foram para minha avó Maria, que vivia com o vô Mário num sítio, sozinhos, há 600 km das filhas e netas.
Que prazer escrever para vovó.
Que felicidade quando ela respondia.
Assim passei a infância e a adolescência, escrevendo cartas, redações escolares.
Quando vovô faleceu e foi minha vez de cuidar dela, outro grande prazer de minha vida.
Como sempre digo aqui.
- Escrevo para mim e se tocar o coração de outra pessoa, fico feliz.
Seu texto tocou meu coração.
Vou guarda-lo para várias releituras
Gratidão amigo do NEIM
Nasci tarde demais para que a carta fosse personagem da minha infância. Já sou fruto dos anos 2000, criado na geração que tinha não só telefone, mas também computador em casa (e aulas de informática na escola). Retenho, entretanto, uma certa estima pela carta, e mais ainda: um desejo por ter experimentado seus tempos dourados. Em tempos de e-commerce, já fico feliz quando o carteiro chega com qualquer caixinha, cheia de qualquer cacareco comprado online e mecanicamente empacotado num centro de logística por aí... quão maior deveria ser a alegria em receber num envelope todo carinho de alguém distante!