#51. Prosaica entrevista o poeta João Filho
A partir desta edição, Prosaica conversa com autores que têm feito a diferença na atual cena literária brasileira
Doutor em Literatura Portuguesa pela USP, mestre em Literatura e Cultura pela UFBA, o poeta João Filho é modesto: “recebo uma atenção do público mais do que mereço”. É possível discordar. Experiente e premiado, o baiano de Bom Jesus da Lapa é um dos principais poetas em atividade no país, e um dos maiores — se não o maior — de sua geração. Se o Brasil fosse um país sério, e se o mercado editorial brasileiro também fosse sério, João Filho figuraria tranqüilamente nas antologias nacionais, e seus poemas, em livros didáticos país afora.
Aos 50 anos, o autor ostenta uma carreira sólida. Publicou A dimensão necessária, (2014), pelo que recebeu o prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional; depois, Auto da Romaria (2017), Um sol de bolso (2020), Ao sul do labirinto, (2022) e Rezas (2023), todos pela editora Mondrongo. Na prosa, publicou Encarniçado (contos, Editora Baleia, 2004), Ao longo da linha amarela (contos, P55 Edições, 2009), Dicionário amoroso de Salvador (crônicas, Casarão do Verbo, 2014), além da peça Auto do São Francisco (Kelps, 2017). Seu trabalho mais recente é a tradução da obra Jardim de versos para crianças, de Robert Louis Stevenson (Edições Oratório, 2025). No exterior, João Filho publicou em antologias na Alemanha, na Argentina e no Peru.
Nesta entrevista, o poeta radicado em Salvador fala do ofício poético no Brasil atual, da relação com o público, o que pensa a respeito da inteligência artificial, da religião, da política, e aconselha aos jovens autores.
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Começando pelo básico. Como você se encontrou na poesia, João?
Acredito que todos nascemos com alguma propensão para algo. Como atestava Nelson Rodrigues: “Até para ser ladrão é preciso ter vocação.” No meu caso, fui primeiro encontrado pela Poesia do mundo, das pessoas, das coisas. Porque existir é um milagre, e todo milagre é uma demonstração da verve poética divina. Desde menino, o mundo era (e continua sendo) um espanto para mim. Costumo dizer que sou um metafísico incurável. Ouvia meu pai e um tio meu recitarem cordéis inteiros de memória. Aos 11, 12 anos comecei a rabiscar meus titubeios de escrita. Aos 13 comecei a estudar violino. E, juntamente, nesse período e um pouco mais, desenhava. Desisti da música, do desenho, mas continuei firme na literatura. De lá até o meu primeiro livro de poemas publicado, aos 39 anos, acredito que sem exagero, testei literariamente um pouco de tudo em prosa e poesia. Estudei e estudo com zelo. Tudo isso faz um poeta? Não. Mas ajuda a fortalecer o talento recebido, por menor que seja.
E como é fazer poesia a sério, no Brasil, em 2025? Na sua leitura, como andam as coisas nessa seara, a receptividade do público?
Fazer poesia a sério no Brasil sempre foi um tipo de sacerdócio leigo. Veja o caso de Manuel Bandeira (1886-1968): poeta lido e reconhecido pelos leitores e pelos seus pares, e, ao publicar um dos seus livros, teve de recorrer ao que se chamava de subscrição, a vaquinha, ou, nos nossos dias crowdfunding, numa lista de 40 pessoas. Em casos raros, como o de Adélia Prado, e, antes de falecer, Ferreira Gullar (1930-2016), livros de poesia vendem bem. Com a internet o contato com o público ficou mais direto e tem-se uma melhor visão de quem é o seu público por pequeno que seja. De modo geral, no Brasil, os leitores de poesia nunca foram multidão. Para contrastar com o público russo, por exemplo: no século XX lotava estádio de futebol para ouvir um poeta recitar seus versos, e sem a obrigação estatal do partido, era espontâneo. No meu caso, não posso reclamar. Recebo uma atenção do público mais do que mereço. Na verdade, ninguém merece nada.
Por falar em Brasil, hoje o escritor nacional precisa também promover seu trabalho e até formar o próprio público. Na poesia também? É preciso ensinar a ler os versos, passar alguma teoria mínima, algo do tipo?
Sim! Na poesia é ainda mais necessário. As redes sociais, como um todo, são um veículo formidável para conversar com o público e ajudá-lo sem pedantismo a ler com mais proveito um poema. Trabalho de formiguinha, é verdade, mas que eu faço com prazer.
É comum que escritores iniciantes esbocem uns versinhos de pé quebrado e se imaginem poetas. Depois, a maioria desiste da poesia e parte para outros gêneros. E quanto ao poeta profissional? Quero dizer, há uma espécie de “segunda afirmação” para prosseguir e se especializar na poesia?
Acredito que sim. A segunda afirmação é o retorno sincero de amigos e leitores que tenham algum conhecimento de literatura. Por mais que a crítica negativa fira nossa vaidade, é preciso reconhecer limites, erros, imperícias e falta de talento. E se a pessoa consegue ficar dias, meses, anos pensando na feitura de um verso, de um poema (não é exagero), e não se cansa, é o seu elemento, nesse caso, ela passou no teste.
Os mestres do romance dizem que, entre outras qualidades, o romancista deve amar a natureza humana no sentido de observá-la com sensibilidade, sem pré-julgamentos. E quanto ao poeta? No seu entender, como deve ser o temperamento, o elã próprio de um poeta?
Penso que o poeta deve ter um olhar amoroso sobre o mundo e as pessoas. Amoroso no sentido de observar sem querer transformá-los. Aceitá-los tais como eles são. E, acredito, deve ter uma propensão ao universal. Manuel Bandeira era um poeta voltado para as coisas mínimas e ínfimas da vida cotidiana, mas sua ternura fala ao coração de todo leitor sensível.
Aproveitando porque o tema está relacionado: penso que a imaginação poética funciona melhor na síntese. Mesmo em poemas longos e derramados. O poeta deseja pôr o mundo numa imagem, diferente da imaginação romanesca – esta necessita se expandir num mundo particular ou universal que seja. A primeira é contenção, a segunda expansão.
Manuel Bandeira e Octavio Paz afirmam que o verso livre tem uma complexidade diferente do metro, pois aquele se apóia totalmente na musicalidade da frase (Bandeira) e na imagem e imaginação (Paz). Você concorda? Na sua obra, você trabalha mais o metro. Por que a preferência? O que acha do verso livre?
Concordo. Os livros de poesia que publiquei contêm mais versos metrificados, mas há uma quantidade maior de livros inéditos com verso livre. Hoje, no entanto, os poetas – em sua grande maioria, principalmente o mainstream – não dominam a arte versificatória, logo, parece que o verso livre é mais fácil, mas é precisamente o contrário. Claro, métrica não salva poema ruim. Eu prefiro a música, a beleza, as grandes e pequenas harmonias da Língua, as sutilezas que podem passar despercebidas numa primeira leitura. De novo, cito mestre Bandeira: “os modernos são aleijados do ouvido.” A métrica, quando bem manejada, sem rigidez excessiva, nem cagações de regra, afina o ouvido do sujeito.
Sua poesia remete muito aos chamados poetas católicos, como Alphonsus de Guimaraens, Jorge de Lima, Murilo Mendes, entre outros. É correta essa associação? Há essa intenção em sua produção autoral?
Sim. É correta. Embora eu conheça a poesia dos autores citados, e os admire com sinceridade e respeito, não é intencional o que escrevo em relação à obra deles. Com consciência artística tentei e tento emular certa musicalidade da poesia lírica portuguesa. No Brasil, dois exemplos são Cecília Meireles (1901-1964) e Jaci Bezerra (1942-2020). Do alagoano mais do que da carioca. No entanto, como respondeu o poeta português Fernando Echevarría (1929-2021) ao ser perguntado sobre a relação de sua escrita e sua fé, respondeu: “– Não sou um poeta católico, sou um católico que é poeta.”
Agora perguntinhas de enquete, se não se importa. Pode listar suas maiores referências na poesia, no Brasil e no mundo?
No Brasil os grandes da historiografia do século XX: Bandeira, Cecília, Drummond, Cabral, Quintana, Jorge de Lima, e os já citados. No mundo: tenho uma predileção especial pela poesia de língua espanhola dos dois lados do Atlântico. Mas tentei mapear o máximo do que pude e posso da poesia do mundo em edições bilíngues e nas três línguas que estudei de modo mais detido – inglês, francês e espanhol.
Política, inevitável. Como o indivíduo João Filho “se explica” politicamente?
Antes, eu preciso dizer: procurei e procuro limpar do meu espírito todo e qualquer resquício de raiz revolucionária política, cultural e afins. O Estado deve ser cada vez menor e interferir o menos possível na vida da pessoa. Isto hoje soa utópico. Em tudo na vida eu procuro ser católico. Jesus Cristo é o meu Rei. O resto é patifaria.
E essa coisa de inteligência artificial te preocupa de algum modo? Representa alguma ameaça…
Nadinha. É só uma ferramenta, e muito útil, por sinal. Vai, óbvio, desempregar pessoas, mas, como toda sociedade, elas, as pessoas, se arranjarão de outro jeito. Inteligência é um ato interior de luz (logos) que acontece no espírito humano. Friso: humano. Gato, cachorro, lagarto, baobá, ipê, rabanete não são capazes de tal ato.
Há algum projeto em andamento? Vem novo livro por aí?
Tenho sempre vários projetos na gaveta virtual. Um dos meus sonhos é reunir a poesia que sobreviveu à lixeira editada ou não num só volume. Está pronto, só falta arrumar dinheiro para a publicação. O problema é que o cartapácio ficou com quase mil páginas. Em prosa há um livro de contos no qual reúno alguns publicados em antologias. Outro em prosa inédito é um tipo de recuo na memória. E tenho trabalhado lentamente num outro livro misto de crônica, ensaio e reflexão. Enfim, estou sempre a maquinar algum projeto literário.
Que livro está lendo no momento?
Leio mais de um livro ao mesmo tempo. Mas vou citar somente Natureza e modelo – uma síntese de filosofia da ciência e filosofia da natureza, de William A. Wallace, tradução de Guilherme de Berredo Peixoto.
Terminemos com a clássica: o que você pode falar para quem está começando e pretende ser poeta pra valer?
Ninguém é obrigado a ler o que você escreve. Conquiste o seu leitor. Tenha paciência no estudo, mas não pare. Sem domínio técnico não há literatura que preste. Agora, o mais importante. Faça-se a pergunta sincera: você escreve poemas por que gosta de labutar com palavras, sons, imagens, ritmos, ou por que pretende defender alguma ideia, qualquer que seja? O sim para o primeiro caso é sinal positivo, ótimo! Já o sim para o segundo caso... desista. Você pode até ser talentosíssimo, um gênio, mas só vai acanalhar a poesia.
*João Filho publica a newsletter Rua da Graça no Substack. Nas redes sociais, está no Instagram e mantém um canal no YouTube. Site oficial: poetajoaofilho.com.br
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