#22. A inseparável solidão do escritor
Escritores são gente esquisita e apreciam um bocado a própria companhia
O ESCRITOR É UM SOLITÁRIO. Talvez você já deva ter ouvido isso nalgum lugar, de modo que a simples menção beira o lugar-comum. Mais que peculiaridade, a solidão do escritor faz parte do ofício. O ato de escrever requer certo afastamento só proporcionado pela ausência de companhia. Há escritores que dedicam o livro à pobre esposa, depois da coitadinha suportar meses de mudez e de fugas ao mundo da lua (a categoria esposa-de-escritor, aliás, merece abordagem especial).
Para escrever é preciso mergulhar na mente, na alma, no interior, essas coisas; e de lá verter a conversa que se desejará ter com a bondosa leitora e o generoso leitor. Tal ato implica em antes ouvir com sensibilidade os próprios pensamentos para então trazê-los ao papel ou à tela. Escutar pensamentos: tarefa impossível de se fazer em meio a barulhos de circunstantes e, principalmente, sob aborrecidas interrupções.
Entretanto, não há charme em ser só. Embora escritores cultivem um lado eremita, a solidão apenas parece fácil. Nada mais enganoso: por exemplo, num país ruidoso como o nosso, tão refratário à introspecção, a solidão pode ser dificílima. Pode-se objetar não muito inteligentemente os malefícios de uma solidão exagerada e monástica, como se isso fosse possível. Na realidade, beira o impraticável qualquer isolamento monástico fora dos monastérios no Brasil.
Ficar só não é privilégio do ofício de escrever. Laboratoristas, relojoeiros¹ e tantas outras profissões também são solitárias, por exemplo, e deve haver outras ocupações predominantemente isoladas que nem imaginamos: todas consideradas esquisitas, certamente.
Falar sozinho
No filme Melhor É Impossível (As Good as It Gets, de 1997), Jack Nicholson interpreta o bem-sucedido escritor Melvin Udall, tipo ranzinza e detestável que, contraditoriamente, publica livros com sensibilidade de comover o coração de mocinhas. Pois bem, o filme começa com Udall em seu belo apartamento tentando se concentrar numa página quando batem à sua porta e o interrompem muitas vezes, no exato momento em que ele busca a frase matadora para fechar o capítulo. A amolação leva Udall à ira, daí ele resolve vingar-se das interrupções constantes e a história do filme se desenrola.
Certo, mas tudo isso descreve a solidão criativa (ou criadora) e não necessariamente a solidão da vida pessoal do escritor. Quem pretende escrever fatalmente precisará ficar sozinho para botar a mão na massa, mas o entorno pode ser bem Dorival Caymmi e sua imensa família.
Solidão portanto é utensílio, material de trabalho; daí ser difícil pensar num escritor que não fale sozinho por aí e que não converse para dentro, monologue com seu próprio eu criativo. Quem o vê de longe pensa ver um doido. Pobre senso comum: talvez fiquem consternados, como se o coitado sofresse de algum mal.
Não raro, a solidão do escritor é uma espécie de conquista, obtida por luta diária. Ernest Hemingway dizia que qualquer um pode obter paz para escrever, contanto que imponha isso; como o escritor americano andava sempre bem acompanhado de trabucos, ninguém duvida que ele praticasse o conselho.
Mas cá em nossa colônia verde e amarela não sabemos bem como vive o bicho-escritor, pois não convivemos com bichos-escritores; não os vemos com frequência nem tropeçamos em muitos deles como numa Manhattan de Philip Roth e Paul Auster; ao menos, não de um modo que possamos identificá-los na calçada, “olha só o jeitão daquele cara, aposto que é escritor.” No Brasil, talvez isso fosse possível até meados do século passado, no Rio de Janeiro, especialmente nos arredores da Livraria Garnier ou da José Olympio.
Seja como for, se víssemos alguns escritores a caminhar por aí, veríamos o quanto eles não são muito de conversa e parecem todos meio macambúzios, algo tristonhos; andariam desacompanhados no mais das vezes, e é bem possível que os veríamos a balbuciar no passeio público feito uns malucos discretos, sempre com esse conversar para dentro insistente.
Como no flagrante² que a jovem repórter Glória Maria deu em Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro. Era 25 de dezembro de 1984, todos reclusos a confraternizar no Natal, e lá está um Drummond a ver vitrines de última hora. Aproveitava a cidade vazia, decerto. A reação assustadiça do poeta ao ser abordado pela reportagem é impagável, mas no fim ele se sai bastante bem.
A solidão no digital
E no esquisito século 21? Em plena era digital, a solidão do escritor é muito, muito parcial. Pode haver ainda o tradicional isolamento no ato de escrever de que falamos, aliás necessário; mas, tão logo dê à luz o livro, o escritor terá de assumir o papel de divulgador e de relações públicas da própria obra. Terá de circular: escrever para os outros tem esse lado hoje em dia. O mundo editorial do novo século requer um escritor audiovisual, multiplataforma, que tenha tanto jeito com o latim na pena quanto com entrevistas em podcasts.
Por exemplo, editoras há que, antes de publicarem o autor, levantam a contábil quantia de seguidores nas redes sociais — o que de cara pressupõe muitos seguidores engajados. Então, para ser publicado, nosso escritor deverá ter uma audiência sólida, e portanto, um potencial de mercado na largada.
De resto, o atual escritor deverá participar de eventos, palestras, mesas de debate; responderá a perguntas e mostrar-se-á receptivo, amistoso e sociável. Sem dúvida que certos autores até gostam desses convescotes e não recusam um afagozinho no ego. Só que a coisa é mais séria. Toda a movimentação cultural de que ele participa, seja no digital ou no presencial, serve para dar rosto àquele nome na capa, além de fazer com que a presença corporal do escritor coloque o livro na lembrança do leitor e ajude a vender. Marketing que chama. De maneira que além de tudo o autor se torna seu próprio vendedor.
Significa que, no segundo quartil do novo século, todo escritor que queira ser lido deverá saber que, para sobreviver hoje em dia, depende não apenas dos incontornáveis escrever e publicar, mas de aparecer, dar um alô geral, fazer umas lives. Não basta assinar folhas de rosto numa noite de autógrafos. Escritor precisa participar, quem sabe discursar; deve ter atuação virtual e, por extensão, presença física puxada pelo digital; ou, como diriam alguns humanos muito paralelos a esta newsletter, o escritor precisa estar nos “espaços”. Parece complicado, e é mesmo.
Nessa hora penso quanta sorte tem um lendário Luís de Camões que, poeta clássico, até hoje é requerido e obrigatório sem jamais ter precisado fazer nada disso. Quem imaginaria um Camões hoje em dia, orientado pela editora a constar nos “espaços” a ser cobrado por não se comunicar bem com a geração tiktoker? Acuado, talvez o bardo nem saísse de sua modesta casinha, aliás devidamente identificada no Google Street View.
A revista revisitada
Entre o quase extinto jornal de papel e o ainda querido livro de papel, existe a revista. De papel.
A revista sempre esteve situada entre o jornal e o livro, e sua característica maior é justamente essa intermediação entre a cultura no sentido forte do termo — em geral presente nos livros — e o colunismo diário, a crônica jornalística dos jornais, mais ágil e mais chã.
A revista é ou deveria ser inteligente como uma conversa inteligente entre pessoas inteligentes, com despretensão na medida certa enquanto informa com desprendimento e acurácia. É excelente meio para alguém que pesquisou algo vasto em muitas boas fontes e fornece um resumo elegante e ao mesmo tempo abrangente dos temas, tudo à guisa de novidade temperada com alguma opinião.
Daí a revista ser um veículo muito interessante de se ler, ideal a leitores iniciantes e iniciados, de modo a levá-los pela mão a temas por vezes desconhecidos ou injustamente esquecidos, quase sempre de forma agradável e instigante. Como nenhum meio, a revista gera intimidade com os leitores, diferente da impessoalidade dos jornais e a sisudez dos livros.
Pois bem. Tudo isso para dizer que faltam revistas no Brasil, e como. Há uma vergonhosa ausência delas hoje em dia, algo que abranja o público razoavelmente escolarizado e com certa cultura, público mormente urbano mas não apenas, e que versem da cultura popular a erudita. Tudo de um jeito simpático e aprofundado na medida certa. Já houve algo assim, como a revista Bravo! dos anos 90.
No entanto, ao mesmo tempo em que sinto falta, não me atreveria a fazer pedidos nesse sentido, se acaso pudesse despertar alguém com os meios necessários (e os há): tenho medo do atual jornalismo cultural vigente, encaroçado e empelotado de wokeism americano: como os demônios no Evangelho, eles são legião, pois são muitos.
Supondo que alguém ouvisse minha súplica e atendesse toda a demanda reprimida por revistas inteligentes, digamos, essa não chegaria sequer ao número 2 sem atolar o pé em machismos e racismos e fobismos mil. E, uma vez caída nessa areia movediça do woke, não sairia mais; quanto mais mexesse, mais afundaria.
Mas gente para consumir existe, garanto: há uma sede de inteligência refugiada nos streamings e espalhada pelas redes sociais, e uma revista dessas podia ser impressa sob demanda hoje em dia, apenas para assinantes-mecenas. Prejuízo pouquíssimo, próximo a zero. As edições podiam trazer textos primorosos, o que implicaria numa escrita por gente que, além de saber escrever, saberia ler; algo raro na presente territorialidade. Mas que los hay, los hay. (Piscadinha de ‘tamos aí’.)
Bem, elucubro e imagino, mas acreditar... não há tal sensibilidade presente em qualquer sujeito remediado e minimamente culto para assumir uma empreitada dessas, que demanda mais dinheiro que coragem. Seja como for, a lava vulcânica dos -ismos que do norte global escorre fumegante aos vilarejos sulistas não perdoaria um “espaço” desses, exceto se o dono dissesse, e de maneira muito altaneira e cônscia de seu papel, um rotundo não às patrulhas irrigadas pela Open Society³ & associados.
Mas daí viria a reação conhecida: nos meios chiques concorrentes, diriam unânimes da publicação: afastem-se, aquilo fede, é de ultra-extrema-direita. A prova? Eles nada falam de -ismos, e pior, tudo conforme a gramática normativa. Chauvinismo puro.
A inutilidade do conto
Para além da inutilidade da própria literatura, há uma inutilidade dentro da literatura, uma inutilidade da inutilidade, portanto uma meta-inutilidade: o conto.
Não há gênero mais inútil que o conto na literatura. Poetas podem objetar “não, a poesia é mais inútil”, mas lamento: quantos se dizem poetas (mais ativistas, percussionistas e artistas de rua)? Há magotes deles; há sujeitos que ganham a vida como poeta-e-rapper, poeta-da-periferia, poeta mãe-guerreira-e-mulher. Mas ninguém verá um contista que a alardear, com todo o brio, “prazer, madame, sou um contista.” Um late show que entrevistasse um contista? Impossível.
Que há de sexy num contista? Ele está para a literatura o que o dentista está para a medicina. Mesmo os manjados “ocupadores de espaço” nunca reivindicam o espaço do contista, pois a Fundação Cultural Bancão não subsidia contistas; logo, nem há tal espaço. (Sacou? espaço means grana.)
O conto é a mais inútil das formas de literatura, portanto; a mais desprezível delas. O conto é o homem branco de meia-idade da literatura. Deixam-no existir por não poder extinguir, e como não se pode eliminar, resta apenas desprezar.
De minha parte, não me apego a coisas por sua utilidade e talvez não seja muito correto dizer, e talvez eu fosse incluído nalguma lista negra (alva?) dos gostos literários por afirmar isso: eu gosto de contos. Ah, sim.
Pra você ver, eu escrevia isso quando me deparo com uma ótima companhia, a do sr. Marques Rebelo. Vede o que ele me disse:
“O público brasileiro ainda não acredita no conto, quando é o conto o que a nossa literatura tem de, por enquanto, de mais alto.”*
Vou discordar? Só louco discorda.
Quem disse
“Pediram-me muitas vezes para ser justo e observar uma coisa de todos os lados. E fiz isso, na esperança de que uma coisa talvez pudesse se tornar melhor se eu a observasse de todos os lados. Mas cheguei ao mesmo resultado. De maneira que continuei a observar a coisa apenas de um lado, poupando muito trabalho e desilusão. Pois é consolador considerar que uma coisa é ruim e, ao fazê-lo, poder se desculpar apelando a um preconceito.”
— Karl Kraus
*
“Para mim, o bom escritor é aquele que nos seus livros nos leva a um reencontro com o que temos em nós de mais profundo e verdadeiro. O resto é conversa fiada.”
— Herberto Sales
*
“A vida é apenas um tempinho horroroso cheio de momentos deliciosos.”
— Oscar Wilde
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Bom texto, Fernando, que me fez lembrar do Murakami e de Vargas Llosa que tratam da solidão necessária e do desejo de conviver: pedalar, ir ao cinema ou a um restaurante (sem sofrer aborrecimentos de "fãs" e leitores desgostosos com. No meu anonimato, posso exercer o direito de ir e vir.