#20. Elogio da normalidade
Ser normal não é sexy e pode ser chato, mas é melhor no fim das contas
É MUITO NORMAL FALAR EM NORMAL: isso é normal, tal pessoa é normal. É tão normal falar em normal que ninguém pensa na normalidade — a propriedade em si, a substância de todo normal.
Também é curioso falar em normal porque, embora seja algo fácil e até agradável de se lidar — mesmo sem ser sexy nem dar frisson —, a normalidade jamais é perfeita. Normal não implica em perfeição, longe disso. Há muitas imperfeições na normalidade, mas sempre uma imperfeição passável, tratável sem sobressaltos.
No caso do temperamento, normalidade tem a ver com equilíbrio — palavrinha gasta e um pouco irritante; uma medida mais ou menos equitativa entre qualidades e defeitos, escorregões e acertos. Do ponto de vista da personalidade, normal seria, por exemplo, aquela pessoa cuja paciência tem limite e que reage se lhe pisam o calo; normal seria falar o palavrão num momento de cólera, por estar certo ou equivocado, para logo retornar ao estado calmo e pacífico, de boquinha limpa. Por outro lado, ninguém com temperamento de pólvora pode ser chamado de normal.
Tudo muito certo, mas o que significa normal?
A palavra lembra imediatamente norma. (Em certo momento houve até quem batizasse sua filhinha desse nome, Norma; bons tempos). Segundo o dicionário português Priberam, normal quer dizer:
Regular; conforme a norma.
Aquilo que revela normalidade; aquilo que é habitual. = USUAL
Ainda no mesmo dicionário, gostei da origem etimológica:
Do latim normalis, -e, feito com esquadro, conforme a norma.
Interessante: ser normal significa estar dentro de uma certa medida convencional, algo encaixável e com os ângulos no lugar (feito com esquadro), circunscrito a uma maneira costumeira de ser e agir. O contrário direto de normal, nesse caso, seria anormal — designação negativa ou pejorativa, ou excêntrico, melhor, aquele que escapa do círculo da normalidade às vezes de forma positiva.
Uma sociedade saudável terá portanto uma ampla maioria de gente normal com um entorno normal e uma dinâmica de vida normal. A normalidade dá segurança, estabilidade e tempo para decidir a próxima atitude a tomar. Uma mente em ordem tenderá ao normal.
Não só pessoas são assim: pense no cãozinho ou no gato. Em regra, eles são normais: ficam lá tranquilinhos a maior parte do tempo, se não forem muito estimulados. Fazem isso para poupar uma energia a ser usada em momento oportuno. Resolução elegante, que devíamos seguir.
A tara da mudança
A era da informação na qual vivemos parece nos forçar à anormalidade via estimulação constante. O homem medieval jamais foi tão estimulado como nós, exceto pela mudança na temperatura, por uma árvore a cair ou por um burrinho perdido no bosque. Já na maravilhosa modernidade há um apregoar já velho contra as convenções, contra as acomodações da vida social.
Todo brasileiro já ouviu o ditado futebolístico “em time que está ganhando não se mexe”. Ora, não se mexe pois está normal, funciona bem. Tempos tristes que vivemos: pois hoje se mexe, troca, inverte, tira, põe e não deixa ficar, mesmo se o time estiver invicto.
Pausa para evidência anedótica: eu por exemplo mal saio de uma empresa que mexeram e fuçaram porque dava certo, não o contrário: mudaram tudo de alto a baixo porque o modelo funcionava, então o superior do superior do superior num momento de tédio resolveu desamarrar o robe de chambre, melhorar tudo muito além da melhoria e meteu um pé de cabra num motor ligado e azeitado. Resultado: pifou, claro. Não sei se ele percebeu.
Mas não é assim o tempo todo? Se você se acostuma e gosta de um jeito de fazer as coisas, logo mudam para um jeito que não funciona mais. Se lhe atendem bem daquele jeito, logo mudam para outro que não dá certo. Se há um funcionário bom no serviço, trocam por outro não sabe levar o garfo à boca. Há certa tara psicótica pela mudança, principalmente quando algo está apenas normal; há certo ódio doentio a todo “deixa assim, está bem”. Qual o mal em estar bem?
Quando a normalidade escasseia, as sucessivas gerações não se estabilizam na vida. Todos vivem sobressaltados, inseguros de tudo. Ninguém sabe o que esperar no instante seguinte, e a salutar continuidade se inviabiliza. Podia citar modelos familiares e essas coisas de conservador chato, mas vamos falar de dinheiro, verdadeiro deus a quem servimos todo dia.
Se não há uma linha contínua de normalidade desde o ventre e desde o berço, se não há repetição e aprimoramento da repetição, como as maravilhosas corporações esperam que seus negócios se sustentem? Como haverá aprendizado, e depois, a excelência? Fiquem espicaçando a normalidade, senhores, que uma hora o barco vira.
De resto, há tanta contestação à normalidade na praça que esta já se ausentou faz tempo e o contestador maluco não percebeu. Se ainda há um resquício de normalidade presente, é aquela sustentada por certa geração que insiste em viver. Mas a correia de transmissão está rompida, e quando os Atlas se forem, o fluxo benéfico irá simplesmente parar.
É proibido estranhar
Cá em minha choupana, vivo a quarta década e meia de vida, logo não sou nenhum provecto. Contudo, noto como aqui e ali algum jovem se admira de soluções e resoluções simples que qualquer um aprendia em casa, na infância, a observar pai e mãe; mas para o menino aquilo faltou, pois seus pais muito modernos aprenderam que certo costume estava ultrapassado e portanto não o legou ao filho, e hoje ele é vítima daquela negligência.
Há quem não entenda a importância de um banho diário, por exemplo. Fora que há toda uma geração nunca repreendida na vida, sem jamais ter ouvido a palavra “errado” em direção a si. Se a pessoa nunca soube estar errada, não terá em si mesma o conceito de erro e portanto de acerto em contrapartida. Antes estar certo ou errado era algo apenas, adivinha só, normal.
Fora que aparecem algumas confusões no processo. Um dia conversava com um casal amigo e junto deles estava a filha adolescente. Sei lá o contexto do papo, mas lá pelas tantas eu disse ter visto dois sujeitos agarrados no metrô e demorou para eu entender que eram duas pessoas e não uma. Os pais riram à piada boba (pois era mesmo), mas a mocinha ficou levemente chocada e disse “não pode falar isso, é preconceito”.
Não pode falar, é preconceito: para a menina o correto é não poder falar. Imagine. Claro que ela não aprendeu aquilo com os pais (tenho certeza, os conheço): algum gaiato a ensinou que o salutar é não-falar, é “desfalar”, calar, nunca dizer o que pensa e talvez nem mesmo pensar. Tudo por causa de um certo crime de preconceito que não é crime de maneira alguma (preconceitos todo pecador os tem, inevitável).
E nem era preconceito, pois não houve juízo de valor. Foi uma observação exagerada, para dar efeito, mas a mocinha aprendeu que é estranho estranhar; logo, deve-se aceitar de imediato o estranho e abafar o próprio estranhamento justa e principalmente por ser estranho. Receita pra enlouquecer qualquer um.
Como dominar o mundo
Se eu pretendesse dominar o mundo como o Cérebro do desenho animado Pinky e o Cérebro, a primeira coisa a fazer seria chacoalhar tanto o saco da normalidade nas mentes até aquilo virar uma pasta, uma farofa indistinguível. Como a normalidade não convém a meus planos, eu a combato com a desorganização sistemática dos hábitos e valores.
Assim, uma desordem impossível de reorganizar torna-se o novo normal: implanto meu normal-anormal, digamos. Neste estado, qualquer alteração posterior não fará diferença, ninguém irá perceber, pois se qualquer um nota a sujeira no vestido da noiva, ninguém liga para a sujeira na calça do mendigo. É a organização que evidencia a bagunça, a limpeza que evidencia a sujeira, a ordem a desordem, a normalidade a anormalidade etc.
Então, se quero desestabilizar uma sociedade, devo combater a norma em primeiro lugar, o círculo médio das convenções aprovadas pela experiência.
Certo, mas deixemos um contraponto: a excentricidade não é rigorosamente má a princípio, ela pode ser boa. Pela via da crítica ou da sátira, o excêntrico aponta imperfeições e falhas na normalidade, e assim se pode melhorá-la. Então descobrimos que a normalidade não é imóvel e monolítica, não senhores.
Mas a excentricidade não pode ser ampla e sistemática. Ela é benéfica se houver um centro fixo do qual se deslocar. Por isso o artista sobe ao palco e a platéia embaixo assiste. Nota a proporção? Um ali, muitos aqui: o circo não teria graça se todos fossem palhaços.
Normais e tiranos
Acho que nos dias correntes já fugimos demais do da centralidade da vida. Contestar demais cansa. Dia desses vi um comentário na rede social, algo que se fala desde 1960: “nós não estamos na década de 50.”
Eu sempre me perguntei o que de tão errado houve naqueles anos 50. A graxa dos sapatos? Por outro lado, vejo com os olhos da cara o erro dos 1960 em diante, justo daqueles que inauguraram a pergunta acima. O mundo atual é culpa de 1960, que encurtou saias, queimou sutiãs e pariu monstros.
O dilema hoje não é romper com algum comodismo paralisante (qual?), mas tentar a reacomodação do que há e houve de bom. Ao menos daquilo que nunca fez mal a ninguém.
Lembro que, na História, toda revolução desterrou uma odienta normalidade anterior — odienta aos revolucionários, claro —, bagunçou tudo no momento mesmo da revolução, e depois precisou arranjar outra normalidade posterior rapidinho, senão não dava pé, o governo revolucionário não conseguia fazer o serviço revolucionário dele.
Então os tiranos sempre tiravam uma carta muito prática da manga, algo que os vencidos pela revolução não faziam: eliminar os novos anormais que só atrapalham de um jeito nada normal, ou seja, matando.
Olha, melhor manter uma tediosa e nada sexy normalidade que sofrer a anormalidade da tirania. Normal é melhor. Estranhar e falar que estranhou é melhor que nunca falar e depois morrer. Queria ter dito isso à minha amiguinha naquele dia.
A classe jecalta
Se você é daqueles que aprenderam que as classes sociais dividem-se em baixa, média e alta, pense de novo, porque o sr. e a sra. não conhecem bem o Brasil.
O Brasil tem mesmo as três classes acima e mais uma, adenda à classe alta que é a classe jecalta (jecalta é uma junção que lanço, de jeca + alta).
Note que chamar rico de jeca não é exatamente novidade (Paulo Francis praticava o esporte), e não é bem de xingar que se trata aqui. Trata-se de uma novíssima etnografia que há muito existe e ninguém catalogou, então sobrou para esta nulidade que vos escreve. Se ninguém clama, as pedras clamarão.
Ora, direis, o que é jecalta?
Bem, jecalta é o sujeito que tem dinheiro, muito dinheiro, muitissíssimo dinheiro e não é jeca por acidente ou fatalidade, mas porque justamente isso o faz ter muito dinheiro.
Então notem a diferença sutil: uma coisa é dizer “fulano é jeca apesar de rico”. Isso é chover no molhado, como diria Camões. Trata-se de outra coisa: fulano é rico por ser jeca; quanto mais jeca, mais rico; sua riqueza aumenta via jequice. Trata-se de um método.
Onde você os vê?
Principalmente na tevê aberta, aos borbotões. Há um Ratinho dono de três quartos do PIB paranaense, que há décadas finge-se de jeca. Há certo Joesley (John Wesley?) dono de frigorífico multinacional e que diz “dois milhão” (a recepcionista dele seria demitida se dissesse “dois milhão”). Há um tal seo Sidney da Ultrafarmácia que parece o bom jequinha do sítio e vende lá uns remédios aos pobres, mas domina canais de televisão e tem house nos States.
São inúmeros exemplos. O cantor sertanejo nababo que força a ausência dos plurais, que fala sempre como se domasse boi brabo; o jogador de futebol aposentado que ostenta uma pança hedionda e um penteado repelente…
Capisce? O sujeito se faz, se finge de jeca de propósito. E quanto mais finge, mais ganha. Eles fingem ser esculachados, imitam umas caipirices: dizem “a minha Itapira, a minha Sete Lagoas, êta tempo bão”. Não passaram lá mais que doze anos na vida…
Cada plural suprimido é novo milhão na conta do jecalta: é uma classe não só rica, mas muitíssimo esperta. Embora nem um pouco invejável, pois só tem dinheiro e nada além de dinheiro.
Literatura que falta
Falta ao país certa literatura de especialidades. Deve haver um nome próprio para este gênero literário, que desconheço completamente. Perdoem minha ignorância.
Mas que tipo de livro é esse?
É aquele que, bem escrito em primeiro lugar, trata de algum ofício raro e especial, que guarda muitos segredos ancestrais e aspectos interessantíssimos, para além da mera disponibilidade nas lojas e prateleiras.
Falo de confecção e costura, cozinha e gastronomia, sapataria (a arte de construir sapatos) e dos couros, falo da tabacaria fina e da propriedade dos tabacos e das madeiras de um cachimbo. Falo da coquetelaria, da história das bebidas e suas origens. Falo da confeitaria, de como tais ou quais guloseimas agradaram a reis e rainhas e apaziguaram guerras. Falo da charcutaria, da propriedade das carnes desde a alimentação e criação dos animais para o abate.
Enfim, há um sem-número de assuntos e de ofícios muito interessantes de se conhecer.
Lá fora existe (como tudo o mais) essa literatura especializada que é uma delícia de ler. Aprende-se um bocado com esse tipo de livro, e o amor e o respeito com que autora ou autor tratam do assunto de que entendem contagia o leitor leigo, chega a fascinar.
Sinto falta de uma literatura assim por aqui, e que não dependa de sacrifícios para achar apenas edições antigas e raras.
Nessa seara, há uma newsletter escrita por gente que entende e que tem verdadeira reverência pelo que faz. Falo da newsletter Pedra do descanso (link abaixo), escrita pela sra. Anny Manrich, a qual recomendo. Claro que ela sabe muito além do que aborda, e a propriedade com que ela discorre em belo português é encantadora.
Quem disse
“Se queres saber em que consiste e donde provém o verdadeiro bem, vou dizer-to: consiste na boa consciência, nos propósitos honestos, nas acções justas, no desprezo pelos bens fortuitos, no ritmo tranquilo e constante de uma vida que trilha um único caminho. Aqueles que estão continuamente a mudar de intenções e não apenas a mudar, mas a deixarem-se arrastar ao sabor do acaso, como poderão apoiar-se em alguma certeza permanente se eles próprios são hesitantes e instáveis?”
— Sêneca
*
“O fato de que ainda existe um público interessado em descobrir quem somos e o que fizemos deveria encorajar outros escritores a se unirem a mim, mas, de modo geral, as universidades impediram que isso acontecesse. Elas estabeleceram uma hegemonia sobre todos os ramos da literatura — exceto a capacidade de produzi-la.”
— Gore Vidal
*
“Procura viver em contínua vertigem apaixonada; somente os apaixonados levam a cabo obras verdadeiramente duradouras e fecundas.”
— Miguel de Unamuno
Direto do almoxarifado
Prosaica Podcast
#04. Escrever e continuar a escrever no Brasil
Links
Pedra do descanso (Anny Manrich)
Amiga e amigo inscrito, nesta newsletter tento entregar um conteúdo de qualidade e valor, inédito, de um tipo que não se vê na grande mídia.
Acredite, produzir um conteúdo assim demanda tempo, pesquisa e muita mão na massa.
Se você entende que este conteúdo agrega valor a você e gosta de recebê-lo gratuitamente em seu e-mail, considere fazer uma contribuição sem compromisso com este trabalho.
Segue abaixo meu código pix (copie e cole):
fernandolimacunha@gmail.com
O valor você decide livremente, tudo bem? Agradeço sua generosidade.
Nossa, Fernando, agora que vi a sua referência à minha newsletter. Muito obrigada! Você é muito gentil! Fico muito feliz que você goste dela 😊
Considere roubada a definição de classe jecalta. A sociologia perde olhos argutos como os seus.