#17. O futuro não é mais como era antigamente
Os futuristas do século 20 projetaram um século 21 que até agora não deu as caras
NAS FICÇÕES CIENTÍFICAS, o futuro costuma mostrar-se espantoso e mesmo aterrorizante, seja pelo poder bélico, seja pelo predomínio das máquinas ou até pelo apocalipse nuclear. O gênero literário abundou no século 20, não por acaso: o mundo estava a um botão vermelho de distância de ir pelos ares por algum presidente americano metido a cowboy, enquanto do outro lado do mundo, na cortina de ferro, um obscuro líder comunista podia acionar a solução final: a bomba de hidrogênio (da qual ninguém mais fala).
No 1984, de George Orwell, e no Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o tempo não passa de uma sucessão de pioras cada vez mais tecnológicas, centrais e verticais, comandadas a partir de um Estado absoluto e de um cientificismo tão avassalador quanto desumanizante.
Fora da ficção, o frankfurtiano Erich Fromm previa um perigoso esfacelamento das relações a partir da máquina, presente na automação desenfreada do trabalho, terminando assim por influir nas relações familiares dentro dos lares. Para Fromm, o culto da máquina nos tiraria uns dos outros em casa, enquanto lá fora, complicar-se-iam formidavelmente as relações entre os indivíduos, agora orientados por e para aquelas, tornando assim a convivência sadia algo gradativamente impraticável. Difícil não concordar.
Talvez soe exagerado tudo isso, mas não deixa de fazer sentido. O miolo do século 20 mal saía de duas grandes guerras quando o sr. Oppenheimer — cujo nome anda muito na moda ultimamente — deu-nos sua terrível arma final, a bomba atômica. Repletas de ogivas, as duas maiores potências do século passado tinham a capacidade de explodir a humanidade a qualquer momento. E, embora não pareça, ainda têm.
Ao rés do chão, na vida comum, o avanço tecnológico irrefreado se voltaria contra nós mesmos, humanidade, diziam os autores distópicos. Para aqueles escritores e outros visionários de plantão, este futuro maquinal — sob o imperativo da indústria de alta tecnologia e governado por totalitarismos belicosos —, ensejaria uma desumanização progressiva e inevitável. O próprio 1984 não dá qualquer alívio numa linha que seja: sob o regime, a sociedade será repleta de mortos-vivos sociais, controlados desde o alto por um poder frio, tirânico e avassalador, o poder absoluto do Partido.
Robôs e humanos
O cinema do século 20 também retratou sua visão distópica de futuro em muitas oportunidades. A mais famosa delas talvez seja Blade Runner, de Ridley Scott, inspirado numa novela de Philip K. Dick e lançado em 1982 (no momento disponível na HBO Max). A história se passa num longínquo ano de 2019 (sem dúvida é um luxo poder chamar isso de ironia hoje em dia). No filme, o diretor retrata uma Los Angeles futurista e superpopulosa, com a poluição nuclear a cobrir o céu e a bloquear a luz do sol. Uma perturbadora chuva ácida sempre cai na cidade, a despejar veneno sobre humanos e replicantes – ambos indistinguíveis ao caminharem nas ruas.
E, tal qual os humanos, haveria também o mau e o bom replicante — boa, na verdade, pois a androide era fêmea, capaz até de se apaixonar por um mortal e controverso homem (homens não retratados como criaturas execráveis; tal visão típica de 2019 os futuristas não puderam prever).
Enquanto isso, lá fora, táxis voadores serpeiam os arranha-céus com telas enormes dependuradas, a estampar marcas e reclames; telas imensas que se valem do contraste daquele céu de chumbo para despejar suas cores luminosas nos passantes lá embaixo. No futuro, o capitalismo continua o mesmo.
No fim das contas, porém, o 2019 de verdade foi bem mais modesto.
De certa forma, a ficção científica — e as distopias, juntas a ela — propunham-se a antever e a antecipar um futuro que, tudo indicava, seria perigoso e ameaçador: pois se está ruim agora, imagine amanhã? Imagine no temido ano 2000? — pareciam dizer. Sabe-se lá o que é cruzar a fronteira do terceiro milênio, o que poderá acontecer? A dois mil chegarás, de dois mil não passarás, dizia o profeta.
Por outro lado, alguns otimistas e cínicos fingiam uma espécie de desejo amoroso pelo futuro desconhecido, celebrando rupturas e ameaças de rupturas. Pareciam tentar, por meio de uma simpatia prévia de chamar de amigo, não serem atingidos pela dúvida ao tempo vindouro. “Os tempos mudam”, “os tempos são outros”, diziam os contentes, como a se iludirem com uma incógnita, ameaçadora para eles, inclusive: esqueciam-se de que não há lei alguma a dizer que os tempos devem mudar necessariamente, e que nada comprova que mudanças sejam sempre benéficas. Além disso, mudanças sociais não são fenômenos naturais, mas ocorrem pela combinação de toneladas de dinheiro e meios de ação mais todo um sistema de induções sociais convenientes, elaboradas por altos acadêmicos e difundidas pela mídia, para atazanar a gente comum.
Ilusão de controle
Mas por que precisaríamos prever o futuro? Bem, pode-se especular. Aristóteles inicia sua Metafísica dizendo que o homem tem o desejo natural de conhecer. Foi por esse mesmo desejo de tudo saber que a humanidade caiu na desgraça do pecado original, segundo o Gênesis.
A mente humana precisa ter a ilusão do controle. Numa palavra, queremos ser Deus, mais ou menos como Ele: ter toda a informação para domar as intempéries. Queremos táticas para vencer, dominar, obter segurança inabalável diante do imprevisto e do desconhecido. Neste exato momento, possivelmente há mais bilionários pensando em induzir e modificar costumes do que com o jantar de dali a pouco.
A vaidade humana não se conforma com a passividade, tenta dar a volta por cima de si mesma e determinar o que virá, como quem doma o fogo para não se queimar. Na literatura, isso se dá por meio da ficção científica, de fundo admoestador e defensivo, a lançar mão da imaginação; no mais das vezes, as histórias servem de alerta por mentes visionárias e despertas, que não raro acertam as antevisões de forma surpreendente.
Voltando a Orwell, o autor britânico intitula sua distopia com um ano, uma data específica: 1984. Decisão arriscada, e possivelmente ele supôs isso: acamado por tuberculose e a revisar seu manuscrito no leito, talvez não imaginasse a dimensão que sua derradeira obra teria, de modo que não se incomodou em datá-la logo no título. Mas, ironia de novo: o 1984 real foi um ano alegre e de certa forma ingênuo. O evento máximo daquele ano foi as Olimpíadas de Los Angeles, embalada pelo hit All Night Long, de Lionel Richie. Ademais, o futuro orwelliano não previra a queda do Muro cinco anos depois e a dissolução de seu IngSoc, representação fictícia da temida União Soviética, que veio a ser oficialmente extinta a 21 de dezembro de 1991.
George Jetson e Carl Sagan
Contudo, o futuro também tinha sua graça e leveza. Há quem fosse otimista e brincasse com as possibilidades deste século 21. Os desenhistas Hanna e Barbera viam um futuro divertido, no qual uma prosaica família Jetson passeava em carros voadores com as crianças e o cão Astro a bordo. No desenho animado tudo é aéreo, nada de praças e parques para comer pipocas e hot-dogs: as lanchonetes ficam no alto de prédios altíssimos, a furar nuvens como agulhas, cujos atendentes eram prestativos e simpáticos robôs. O mundo dos Jetsons é todo urbano e sintético, feito de vidro, vinil e metal colorido, repleto de bom-humor, com no máximo alguma confusão leve.
Num plano mais sério e factual, o século 21 seria também o grande tempo das naves espaciais e das viagens intergalácticas. Em 1980, no seriado Cosmos, o admirável Carl Sagan mostrava-se otimista com a sonda Voyager, lançada três anos antes ao espaço sideral, tendo a bordo um hoje romântico LP de ouro com a nona sinfonia de Beethoven: um cavalheiresco cartão de visitas aos distintos senhores ETs.
A Guerra Fria marcava a corrida espacial, e tudo indicava que, se em 1969 o homem pisava na Lua, a tecnologia aeroespacial chegaria ao novo milênio com toda a capacidade de cruzar o espaço sideral e até de viajar no tempo surfando em wormholes. Malgrado a Estação Espacial Internacional a orbitar a Terra, e todo o avanço aeroespacial desde 1969, uma nova viagem à Lua anda meio fora de cogitação, limita-se ao zunzunzum.
Homem do passado, homem do presente
Mas, e o humano deste século 21, o que diria ao homem do século 20 se fosse lhe prestar contas?
Diria que há certa inteligência artificial em circulação, a mesma das suas calculadoras, só que num nível sem dúvida mais complexo, textual e imagético. Temos bem menos natureza e verde que ele, mas não a perdemos ainda de todo. Nosso mundo não é todo urbano, cromado e vinílico, os carros ainda não voam, mas qual; no máximo carregam umas pesadíssimas baterias montadas à base do velho extrativismo mineral. Há por aí uns protótipos desajeitados de carros que voam, mas sem previsão de circulação.
Diria que o homem do passado não foi superado. Ainda precisamos da gosma fedorenta petróleo, a qual ainda determina o poder mundial desde Rockefeller; ainda usamos uma jurássica gasolina para mover os mesmos carros do velho Henry Ford, apenas com um punhado de aprimoramentos e muito plástico na fabricação.
Prédios e edificações? Os mesmos do século 20: a geração presente nem sabe fazer uns prédios daqueles mais, segue a repetir e a usar o que já existe. Não há o estilo arquitetônico do século 21 como o art-déco do 20. Há uns prédios deste século, porém não passam de cópias improvisadas daquele laborioso passado.
O futurista também supunha uma progressão das inteligências, a se considerar os níveis crescentes dos séculos 19 e 20, de modo que este século quebraria recordes, algo que beiraria o irreconhecível ao homem simples daqueles dias. Qual o quê: o humano do século 21 decai vertiginosamente em inteligência, e um atual homem de 40 anos tem a inteligência de um antigo fedelho de 20 anos, com sorte.
De maneira que o futuro chegaria, disseram os visionários: artistas e cientistas, pessimistas e otimistas. E de fato o futuro chegou, só que ao mesmo tempo não chegou: o século 20 é que foi o futuro que passou. Este 21 é imóvel, pasmo e modorrento; não vai nem volta, só gira em torno de si, sem voz nem cara.
Enquanto isso, a contagem dos dias prossegue como sempre, mas no resto é tudo igual. Quanto ao porvir, ninguém pensa muito neles como antes se pensava: o futuro não é mais como era antigamente.
A indesejada das gentes I
Acho que não tenho medo da morte, chego à conclusão. Concluo, outrossim, (toma, Graciliano), concluo outrossim que ninguém tem medo da morte — mesmo quem afirma temer a morte.
Pois o que se teme nunca é a morte em si mesma, note. O que se teme é a dor, o suplício; a separação da existência, o retirar-se da Terra, o encerramento das hipóteses e planos, enfim; mas nunca a morte.
O que há depois da morte? Bem ou mal, ninguém sabe, apenas crê. Mas tudo que se considera a respeito da indesejada das gentes pertence à ordem deste mundo, logo, à vida: ninguém deu um pulinho do outro lado para dizer como ela funciona realmente (ou talvez; nota a seguir).
Essa visão trágica e dolorida a respeito da morte pertencem ambas à vida, de novo. Quer dizer, a morte é considerada nos termos da vida, nunca nos termos dela mesma.
Cessada a vida, cessam também a tragédia e a dor. A morte pertence a outra categoria indefinível que, por ser desconhecida, tanto nos perturba e inquieta.
* * *
A indesejada das gentes II
Perdoem a morbidez, mas lembrei de algo que me aconteceu certa vez, e sempre que relembro acho que aquele brevíssimo momento foi um gostinho real da morte, com a diferença de que aquele instante passageiro, na morte definitiva, há de durar sempre e sempre. Não sei.
Foi aos 16 anos, na entrada da escola. Eu estudava no período noturno, estava no segundo ano do colégio. Uns filhinhos de papai traziam umas namoradinhas de carona. Despediam-se à sirene da entrada e saíam cantando pneu, a semana toda.
Naquela noite eu descia a rua entre o meio-fio e a calçada, e em frente à escola havia uma rotatória. Eu já olhava o portão aberto quando um sujeito faz o giro na rotatória a toda velocidade, perde a direção e me atinge de frente. Eu não esperava que ele fosse fazer aquele giro destrambelhado.
Rolei sobre o capô e bati forte a têmpora direita. Puf, apaguei. Eis o gostinho da morte: lembro o exato instante em que a luz na minha mente apagou-se, como a noite quando cai a energia.
Voltei — não sei se segundos ou minutos depois. A luz reacendeu em minha mente de novo e lembro de olhar para baixo e ver minha camiseta Quiksilver novinha ensanguentada (em escola pública no período noturno não se usa uniforme).
O carinha prestou socorro lá do jeitão dele. Arrastou-me para o banco do carona como se me raptasse e, sem cinto de segurança, rasgou avenida afora até o pronto-socorro municipal. Procedimentos realizados, tomei uma caixa de anti-inflamatórios durante uma semana e pouco e fiquei com a cara desse tamanho. Até hoje mastigo meio torto e minha face pende um pouco à direita.
Acho que vi a morte naquela noite. Ela era apagada, muda, inconsciente.
* * *
O onívoro Wilde
Cândido e ingênuo, sempre achei que o sr. Oscar Wilde fosse um divo elegante e refinado, pois consta que ele foi um ardoroso fã de rapazolas, sobretudo os imberbes. Quem leu o Dorian Gray, sabe: Wilde deita ali umas loas aos meninos bonitos, com não disfarçado entusiasmo.
Mas rapaz, o mundo todo sabia menos eu: em certo momento, Wilde desposara a senhorita Constance Lloyd, não sei se antes de despencar a munheca; ainda tivera com ela – o que pressupõe os devidos estímulos e trabalhos necessários ao ato – pois ainda teve com ela o pequeno Cyril e a doce Vyvyan (com dois ‘y’, mesmo).
Que coisa. Quer dizer que o sujeito foi um afetivamente onívoro? Fiquei surpreso sim, mas não faço juízo. Ainda gosto do Oscar.
* * *
Utilidades
Um amigo me contou de quando trabalhou na IstoÉ: na volta do almoço estava ele no banheiro quando chega um fotógrafo, todo esbaforido.
— E aí, fulano? E a cobertura lá, como foi?
— Uma merda, cara. Quase me f*** inteiro pra tirar umas fotos.
— Pois é, complicado...
— E pensar, né — disse o fotógrafo —, e pensar que a gente se mata pro pessoal ler revista na hora de cagar.
* * *
Quem disse
“Reflita, algumas vezes, sobre o inquietante fato de que a maior parte das afirmações que você faz sobre suas próprias opiniões e esperanças, bem como sobre seus gostos, atos, desejos e temores, são afirmações sobre alguém que não está presente. Quando você diz ‘eu acho’, frequentemente não é você quem acha, são ‘eles’ — é a autoridade anônima da coletividade falando por meio da máscara ‘você’. Quando você diz ‘eu quero’, algumas vezes está somente realizando um gesto automático de aceitar, ou pagar, o que lhe foi impingido.”
— Thomas Merton
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“Todo romancista deve inventar sua própria técnica, eis aí a verdade. Cada romance digno de tal nome é como outro planeta, quer seja grande ou pequeno, com suas próprias leis, assim como possui sua flora e sua fauna. Assim, a técnica de Faulkner é certamente a melhor para pintar o mundo de Faulkner, sendo que o pesadelo de Kafka criou seus próprios mitos, que o tornam comunicável.”
— François Mauriac
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“Nunca se faz o mal tão plenamente e tão alegremente como quando se o faz por um falso princípio de consciência.”
— Blaise Pascal
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O livro de Erich Fromm citado é “A Revolução da Esperança - Por um Tecnologia Humanizada”, Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 1969.