POR OCASIÃO DA PUBLICAÇÃO da newsletter número 7, chamada “A questão do escritor” (link abaixo), fui surpreendido com um e-mail muito singelo, sincero e relativamente extenso (em nada desagradável, contudo) de um professor de uma universidade federal do Rio Grande do Sul. Ele descobriu esta newsletter por acaso. Por respeito, omito seu nome, e-mail, e o designo por uma inicial fictícia. Minha resposta é real, datada de 20 de setembro de 2023.
Para entender melhor o contexto da carta, o professor — que depois viria a se tornar um amigo à distância, como é comum nesta era digital —, dizia algo a respeito do que eu chamaria vida intelectual “secreta”, involuntariamente secreta, por não ter com quem dividir impressões literárias e assim dialogar a respeito com alguém à altura dos interesses, digamos.
É um problema com o qual também me deparo, de modo que fiquei tocado com o depoimento do professor. Atribuir a nós mesmos palavra intelectual parece logo afetação, coisa temerária, chega a ofender: é dizê-lo e vir à mente aqueles popstars dos cafés filosóficos da vida. Mas não se trata disso. Vida intelectual consiste basicamente em ter uma personalidade cultivada e inclinada ao espírito, apenas: uma atividade interior movida a partir de um arranjo entre o cotidiano banal (trabalhar, pagar contas, lidar com assuntos domésticos) e alimentar o espírito via leitura de um livro inspirador ou por outras artes, para depois chegar a certo insight filosófico, às vezes abafado por não ser dividido com ninguém; ou quem sabe travar uma discussão interior a respeito de uma questão da existência, e que ninguém ao redor entenderia se ouvisse. Por aí.
O dilema não é recente. Tanto assim que o melhor livro de Lima Barreto (na minha modesta opinião) trata justamente de dois personagens fictícios, um certo Gonzaga de Sá e seu amigo que narra a história. Gonzaga de Sá era um desses intelectuais ocultos brasileiros, camuflados na lida do dia a dia, um solteirão que em casa escapava da mediocridade do funcionalismo público escrevendo, lendo e meditando em temas que só eram importantes a ele mesmo, lamentavelmente. O livro chama-se ‘Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá’. Vale a pena conhecer.
Bem, a resposta ao meu amigo B segue abaixo, na íntegra:
*
Caro B, como vai?
Puxa, por onde começar...
Primeiro, agradeço a honra de contar com sua leitura e, por ela, receber essa correspondência tão gentil e sincera, duas qualidades raras hoje em dia. Obrigado, de verdade. E ela vem em hora oportuna, sobretudo porque, como você afirma com acerto, é raro receber algum feedback mais aprofundado de alguém (embora não goste da palavra feedback). Imagine, mesmo medalhões da literatura mal recebem um olá, que dirá este diletante aqui. Mas é uma honra ler seu depoimento tão sincero e caloroso, em que pese o cargo e a atividade que exerce. Mas isso vem depois da pessoa, de você, claro.
Sabe, B, são palavras assim que ajudam a continuar, porque, imagine, se eu resolvesse neste exato instante não escrever mais uma mísera linha, nada mudaria concretamente falando: nem mesmo algum editor me ameaçaria com demissão, pois não tenho editor algum.
Não tenho nenhuma (nenhuma? talvez exagere; alguma, bem pouca) vaidade com a alcunha “escritor”, muito embora pretenda sê-lo, me prepare para tal e, por ora, fico no campo da promessa e da insistência que supere a promessa. Escritor é a única profissão que eu conheço (pintor também, talvez) que não se pode dizer que o é sem antes exercer – e bastante – o ofício. Um médico ou advogado, não; basta se formar, tirar os devidos documentos e sair porta afora. O resto corre por conta da experiência.
Além disso, escreve-se por razão alguma, exceto obedecer a uma voz que cobra isso na cabeça a todo momento. Escrever para o outro ler implica, creio, não só nas técnicas apropriadas mas na posse de certa alma da coisa, numa sinceridade desinteressada a priori – no sentido de ser sem segundas intenções, pois sim, qualquer pessoa que escreva com regularidade, estude e dedique-se a isso, pretende alguma remuneração, pois escrever também é trabalho e dá trabalho. Bem, você é um acadêmico e sabe como é, pois as áreas se parecem.
Mas quero juntar três pontos que você mencionou num só, pois acho que, pelo menos no meu caso, tudo isso está imbricado em maior ou menor grau:
1. A vida intelectual e a coisa da solidão, de não ter com quem conversar a respeito (o que sem dúvida é importante, sobretudo de maneira descompromissada);
2. O trabalho solitário de escrever;
3. Por fim, “a fonte” de tudo ou a referência que você discretamente diz ter detectado. Vamos lá.
É exatamente assim que ocorre, B. Como você sabe, a sociedade brasileira (pegue dela o aspecto amplo e feche em círculos concêntricos até chegar à família, conhecidos, amigos), bem, ela exalta os emblemas e joga fora os significados reais. É algo cultural, assim funciona a coisa. E aqui vai uma constatação serena e não qualquer indignação, pois estou ciente e já me conformei com isso. Me refiro agora ao termo “intelectual”: ora, ouse dizer por aí “sou intelectual” e as reações variarão da galhofa à ira, passando entre várias gradações no intervalo, sobretudo apelos infames à “humildade”: a camisa de força preferida do rebaixamento intelectual no Brasil, a propalada humildade, que nada tem a ver com a bela virtude. É um cala-boca, mesmo, sabe?
Falo de ser intelectual, mas o mesmo vale para o dizer-se escritor, filósofo etc. etc. Daí que a nossa realidade, isto é, a de quem se dedica aos assuntos do espírito (a definição dicionarizada de intelectual) seja a de viver camuflado de “pessoa normal” nos círculos sociais imediatos, sem jamais tocar em assuntos afins, sempre receando teorizar muito ou mesmo mostrar a capa de um livro que se está lendo (como o Vinhas da Ira do Steinbeck que você menciona). Muitos temem ser rejeitados ou, na melhor das hipóteses, mal compreendidos, vistos como esquisitos etc.
Por outro lado, há a necessidade real de conversar com alguém tais tópicos (diria o batido ‘ter pares’, mas soa meio burocrático, talvez). Para além disso, e mesmo anterior a tudo isso, há que ter uma ou mais referências intelectuais próximas e não apenas as mortas nas lombadas da estante. Falo de alguém mais experimentado que motive, ensine e troque experiências, não no sentido escolar, mas algo de mestre e discípulo, mesmo. Por aí. Fácil não é, com efeito.
No meu caso, acho que até tenho com quem conversar intelectualidades, digamos, mas são quantos? Duas, três pessoas; não mais. Também desisti de celebridades digitais, preocupadas em primeiro lugar em erigir uma imagem de si própria a ser demandada por seguidores, ser um personagem meramente a serviço do que a platéia virtual deseja.
Uso rede social (no meu caso, o twitter e agora o Instagram) para expressar impressões e divulgar o que faço, sem forçar ou apelar para as emoções baixas das pessoas, o que, sem dúvida, daria certo em termos de popularidade. Mas não faz meu gênero, não me faz nada bem mentir e manipular a alguém o mínimo que seja.
Puxando um retrospecto da minha vida, reparo que sempre gostei de ler, olhar ao redor, filosofar a meu modo, ler novamente, refletir etc. Não sou acadêmico. Passei por quatro faculdades e só me formei numa delas para fins de trabalho, e nada mais. Acho que sou autodidata e escolho meus mestres da vez, digamos assim. Estudo a meu modo, embora sempre. Ajo por conta própria e pego referências lá e cá, leio, coisa e tal. E sigo assim, por ora.
Da minha família e entre conhecidos, que eu saiba, sempre fui o único assim. Não obstante, nunca tive qualquer trauma a respeito, apenas alguma solidão inevitável e passageira, sobretudo porque verti – não sei se verter é o verbo exato, talvez deslocar caiba melhor – a necessidade de expressão para algo artístico. Na infância e puberdade, apliquei-me ao desenho, na adolescência à fotografia e à música (aprendi piano, um pouco); e, no início da fase adulta, dediquei-me aos livros. Lembro de decidir numa viagem de metrô: “vou ser um sujeito culto; por nada, por ninguém, por motivo algum, mas quero ser. Vou ler os livros que alguém culto deve ler.” Fiz sem qualquer orientação a princípio, meramente por curiosidade. E sem incentivo algum, exceto por referências distantes a quem eu pretendia imitar, fazer igual.
Em 2006, por aí, passei por uma crise pessoal. Fiz uma espécie de balanço da vida e da minha formação até ali. Longa história. No fim, entendi que eu precisava adquirir conhecimento pra valer e que ninguém faria isso por mim. Parti para livros de filosofia, ensaios e de gêneros variados. Quando lia uma referência a algum autor interessante, ia atrás, buscava na Wikipédia e depois consultava bibliografia, coisas assim. Foi nesse período que, fuçando no Google nem lembro o quê, cheguei ao site do professor Olavo e li dois artigos dele que, naquele momento e circunstância, me impactaram: um foi o “Imbecil juvenil” e o outro foi o “A origem da burrice nacional”. Parênteses: desnecessário dizer o quanto Olavo é controverso; da minha parte, convivi com a parte intelectual dele, o que me interessava de fato em seu trabalho. Li aquele site quase todo, aos poucos.
E então comecei a acompanhar o trabalho dele, o qual, à época, nada tinha a ver com político A ou B, com direita versus esquerda (embora ele batesse na esquerda, como é sabido), nem com bolsonaros e quejandos. No meu caso, o que me interessou no Olavo foi a ênfase que ele dava à chamada vida intelectual a meros mortais como eu, e só. Jamais me interessou a política, nada disso.
A coisa andou e devagar fui conhecendo um pessoal. Algumas boas surpresas, algumas decepções, uns boa gente, outros nem tanto. Coisas da vida.
Enfim, caro B, é uma longa história (de novo). O caso é que hoje eu escrevo sim com pretensões profissionais, no bom sentido; mas não ouso me chamar de escritor, nada disso. Apenas sigo escrevendo, e a regularidade de uma humilde newsletter força a pontualidade e um aprimoramento pessoal constante. Poxa, olha só, você acompanha o que escrevo. É uma responsabilidade que acato com humildade (a verdadeira: humildade diante daquilo que é maior que nós mesmos).
Bem, B, agradeço seu depoimento e acho que devolvi na mesma medida, não? (Risos).
De resto, se não tinha com quem conversar sobre livros e literatura (minha praia, acho), ou o que mais vier à cachola deste jaez, saiba, agora tem.
Da minha parte, aqui da paulicéia desvairada, fico à sua disposição.
Um abraço cordial, felicidades e fique com Deus,
Fernando L. C.
Livro certo, hora errada
Pegamos um livro para ler, lemos, e depois dizemos a nós mesmos se o livro lido foi bom, ruim ou mais ou menos: um julgamento que todo leitor tem o direito de fazer.
Tudo bem, mas nessa avaliação é comum se esquecer de um fator despercebido e decisivo: o humor do leitor no momento.
Ora, o livro não escapa ao temperamento da ocasião. Por isso, nosso autor preferido de hoje pode não ser o de amanhã, a depender das circunstâncias. Se estamos tristes, decepcionados, irritados etc. não parecerá bom ler um autor leve e esnobe, irônico, cheio de diatribes e que viva a fazer troça.
Por outro lado, se estamos naquela (diria rara) disposição leve, num sentimento de coração aberto e numa certezasinha de que a vida pode ser bastante boa — afinal, ela se mostra assim no momento — pois bem, não fará muito sentido ir a uma literatura para habitantes de subsolos, repleta de penumbras e cusparadas na cara do mundo.
Os sentimentos do leitor devem determinar o título mais adequado na hora de puxar o volume da estante. Tudo depende do clima interior. Soa óbvio, mas por vezes isso não ocorre, e a avaliação do livro torna-se injusta: avaliação prejudicada pelo descompasso entre o mau humor circunstancial e o humor intrínseco da obra.
Depois, a má impressão fica, e o leitor descontente, uma vez imbuído daquele mau sentimento agora cristalizado numa racionalização posterior, dirá a si e a outros que tal obra não vale a pena. É possível que tal julgamento não resista a uma releitura, com o humor e a disposição de acordo.
Por isso é bom ter uma biblioteca em casa, ainda que mínima, modesta: você pega o livro da vez e imagina que seja bom (por isso vai lê-lo, claro), mas a leitura não engata: nesse caso, o melhor não forçar mas deixar o volume onde estava e partir para outro.
Moral da história: é bom não confundir o nosso humor com o humor da obra. Aquele pode até ser o livro certo e o autor certo, mas a hora, errada. E vice-versa.
Elas e eu
Que eu me lembre ou saiba, apenas duas vezes na vida uma mulher manifestou a intenção de conhecer-me biblicamente: uma em solteiro, outra bem casado.
Nas duas tive aquele medo dos tímidos que é o medo generalizado de tudo que surge de repente. A timidez é uma prevenção-da-prevenção aos acontecimentos; o tímido torce por desacontecimentos, prefere as insurpresas. Que haja a palavra.
Pois duas propostas foi tudo que tive. É bem possível que um Don Juan, um Casanova redivivo que me leia ria por dentro, com razão: duas propostas ele tem não na vida, mas numa semana, e isso num período de entressafra.
Mas o pouco com Deus é muito, e duas vezes foram meu quinhão. Aproveitei? Não, nenhuma. Era jovem, e se querem saber, penso nisso a vida toda (não todo dia): como teria sido? Com o eventual Casanova é diferente, decerto: faz sempre as honras da casa, de maneira que desdenha as oportunidades, já que tantas recebe. E nem pensa em filigranas do tipo ‘e se?’, exceto se a seduzida o procura novamente tencionando prolongamentos na relação. Pobrezinha.
De minha parte, por outro lado, nunca abordei uma mulher para o ato libidinoso, nem indiretamente, nem por olhares indiscretos. Sempre tive certo medo das mulheres. Explico: elas são humanas mais alguma coisa, elas são humanas também, só que há ali qualquer negócio oculto, um feitiço estranho. Elas são malignas e bondosas, tudo junto quero dizer; têm o bem e o mal entranhados nelas mesmas.
Ora, o óbvio e tedioso homem-macho tem em si o bem e o mal, mas é diferente, uma coisa modular, de etapas que se alternam. A mulher tem ambas as forças simultâneas e revolutas, um amálgama: é preciso portanto altas doses de irresponsabilidade consigo próprio para abandonar-se a uma mulher que lhe proponha conjunção carnal, assim, de chofre. Assusta um bocado.
Vá lá, é que tímido pensa demais. Proposta feita, eu imaginava como seria possível um desempenho olímpico com tanta preocupação na cabeça. Acho que a operação biomecânica requerida ao ato seria inviável, if you know what I mean. Imagine o vexame. A moça não perdoaria, pois doou-se demais e não teve a recíproca. Talvez se vingasse da desfeita e fizesse um desagravo em regime de urgência, difamando-me às outras.
Além disso, eu me perguntava como seria ter a consciência de que aquela moça ali, aquela a quem digo bom dia todos os dias, carregasse consigo a semeadura. Como seria saber que estive ali? Seria uma espoliação metafísica, não sei. Fora a eterna possibilidade de chantagem moral, como quem esquece um cheque assinado na Praça da Sé.
Entretanto, mesmo sem experiência prática fora das cercanias do matrimônio, sempre suspeitei que o melhor jeito de conseguir sexo com uma mulher é propor isso a ela, sem peias, com brandura, precavendo-se para não soar rude, desbocado ou esquisito. Ao que ela diria sim ou não, dona de si e com toda a naturalidade.
Comigo não funcionaria, eu me conheço. De modo que perdi as duas chances, deixei-as passar, mas no fundo acho que agi bem. Um dia me convenço disso.
Quem disse
“Não, meu amigo, não: ainda não fui corrompido. Minha porta ainda se abre ao necessitado que se dirige a mim; ele encontra em mim a mesma afabilidade de antes. Eu o escuto, eu o aconselho, eu o socorro, eu o lamento. Minha alma não se endureceu; minha cabeça não se exaltou. Meu dorso é bom e sincero, como antigamente. É o mesmo tom da franqueza; é a mesma sensibilidade. Meu luxo é de pouca data, e o veneno ainda não agiu.”
— Denis Diderot
*
“Piedade é a minha forma de amor. De ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo, assim como alguém vive pelo desejo, outro pelo medo. Piedade das coisas que acontecem sem que eu saiba.”
— Clarice Lispector
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“Os ingleses costumam dizer que o camelo é um cavalo construído por um comitê ou por um conselho. A história é assim: um grupo de pessoas se reuniu para construir um cavalo, mas, como aceitaram os palpites de cada um dos participantes, acabaram construindo um camelo.”
— Washington Olivetto
Direto do almoxarifado
Link
A questão do escritor (edição 7)
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