UMA DAS COISAS MAIS INTERESSANTES DA VIDA é observar a vida dos outros, constato. Não o faço como quem aponta dedos, mas como quem confessa e faz um breve balanço de si. Noto esse estranho pendor humano que, seja defeito ou qualidade, também me inclui.
E de todas as vidas que passam por nossos olhos, nosso interesse é movido — como a vela dos barcos que vira conforme o vento —, às pessoas mais jovens. Ora, eu mesmo já estive neste território inexplorado chamado juventude, nesta fase de inconstância e vivacidade, nesta senda misteriosa toda feita de estímulo, descoberta, espanto, vibração. Estive aí não faz muito tempo. Lembro do muito interesse que me movia e me energizava sem o saber. Porque o outro nome da juventude é energia.
Sim, ser jovem é ter e ser energia o tempo todo, é ser impelido pelo promissor imediato e pelo distante sonhado e ideal, pelo futuro favorável; ser jovem é seguir adiante, sempre ocupado de si mesmo, dessa pessoa que desabrocha e estréia no palco do mundo pela primeira vez como protagonista. E tal circunstância não está apenas dentro do indivíduo, mas manifesta-se nos ambientes, nos ritos de iniciação: colégio, faculdade, trabalho, lazer, amores e afetos: principalmente nestes. Na juventude, cada instante reserva uma surpresa.
Falo da bela juventude, mas não se entusiasme o leitor: interrompo o doce e o colorido para dar lugar a este homem que deixou a juventude, o viço e o interesse do mundo. O tom do texto mudará a partir de agora. Direi tudo de alma serena, em nada amargo.
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A depender de quem olha sou velho, e sou certamente mais que adulto: é que acabo de chegar à meia-idade. Por ora, tento explicar a mim mesmo o que a fase significa, e deste ponto em diante peço tolerância ao leitor, a quem faculto a liberdade de não prosseguir caso a leitura pareça enfadonha.
Bem, faço um balanço um pouco à guisa do sr. Harry Haller, o personagem criado pelo fabuloso Hermann Hesse e cujo epíteto é o Lobo da Estepe, alcunha que dá título ao livro; se bem que não vivi ainda as aventuras que Haller viveu e pelas quais jamais esperava. Harry Haller julgava-se quase morto em vida, até que lhe surge Hermínia e lhe abre o mundo novamente. Deixo o livro como sugestão a quem acostuma-se com a brancura gradual dos cabelos, o encanecimento irreversível, enquanto aguardo por Hermínia.
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Pois chego à meia-idade, dizia. Segundo a cronologia, entrei aqui há meia década, de modo que a esta altura eu deveria estar habituado à fase, tê-la como costumeira. Mas o que vale é mais a circunstância sentida que a vivida: é preciso um estado interior que confirme o exterior. Espero me fazer entender. De modo que só agora, aos quarenta e cinco anos completos, sinto-me inapelavelmente na meia-idade. Agora sim.
Se me perguntassem, não saberia dizer o que a meia-idade representa. Não saberia definir. Ainda sinto a saúde dos vinte nos músculos — na verdade, sinto-me melhor que os vinte. Meu corpo está melhor. No entanto, o homem de trinta anos que fui me desdenharia agora, pois o homem de trinta que fui era exato, metódico, determinado, mostrou-se eficaz. O homem de trinta que fui ultrapassou aquele confuso e tíbio de vinte e olharia de soslaio a este quarentão aparentemente inócuo, homem de quem as moças não sentem mais medo — talvez por notarem a maturidade estampada na cara.
Elas se aproximam mais tranquilas nos espaços coletivos, imagino que por verem o ar paternal de minhas expressões, e intuírem risco algum. Não sentem mais aquela tensão corporal que atemoriza a fêmea, e acho até que conversariam comigo, quem sabe pedindo breves conselhos; elas confiam mais agora, talvez porque os fios brancos dão a elas qualquer certeza de ser inofensivo. Em minha consciência, contudo, sei que não é bem assim, não só porque os exames periódicos o confirmam, mas por minha biomecânica ainda responder a contento. Tenho o controle mental que o corpo masculino requer, e de um modo que o jovem afoito possivelmente não tem. Na meia-idade, a satisfação é a alheia, satisfação é satisfazer.
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Mas o homem de trinta que fui me despreza. Ele ganha mais dinheiro que o eu atual. Ele me desdenha por me ver abrir mão daquilo que dá certo com toda a evidência. Deve me achar burro (só enquanto não abro a boca). E ele evita minha companhia por ver que perco a prática e por desacreditar de si mesmo ao conferir o meu semblante. Mas eu o conheço bem e ele não me conhece, eis o meu trunfo; então ele hesita um pouco. Sei bem o que funcionou para ele e que o trouxe até aqui. E ele está certo em sua lógica cartesiana, pois, fosse eu aquele de trinta anos novamente, faria o mesmo e talvez melhor.
Ocorre que, no decorrer dos anos e das fases, o duo certo e errado se move, ele se desloca numa espécie de trilho. Não relativizo nada, mas descubro que certos e errados são de uma gama relativamente ampla, e dão-se em ocorrências sucessivas, apresentando novas faces a cada estação.
Na prática, vivo hoje num estranho interregno da vida, num hiato, num abismo entre duas montanhas. Procuro por uma voz certeira e ouço um silêncio prolongado que não é bom nem mau. De resto, sinto um desprezo doce e prévio pelo meio externo, sem odiar nem confrontar: tornei-me aquele com quem não vale a pena o confronto, por perda de tempo e energia. Eu não compenso mais a ninguém.
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Não odeio o mundo nem amo as pessoas. Nesta meia-idade agora sentida no corpo e na mente, todos ficam entre parênteses, como que observados com reticência e sem malícia. Adoto em relação a elas uma neutralidade de quem só observa, como o laboratorista que deposita a lâmina no microscópio e, antes de julgar, examina o comportamento da amostra.
Às vezes, vivo numa conformidade que beira a pasmaceira. Isso me faz mal e me alivio pela racionalidade. Não nego a vida que poderia ter sido e que não foi (Bandeira), muito embora isso já não traga amargura ou desprezo pelos meus velhos pais. Eles fizeram tudo do jeito deles, foram levados pelas circunstâncias entre cegueiras e acidentes. Erraram e acertaram, não sei a quantia exata. Não os julgo, não porque aja como eles — de fato não ajo e sei exatamente porque não ajo — mas por saber que no elemento humano de que também sou feito há uma incontornável fragilidade, uma fatalidade muito difícil de se escapar.
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Eu tinha uma profissão. Ainda a tenho na verdade, e depois de trinta anos ela se impregnou em mim e no meu jeito de ver as coisas. Ela me deu um método. E envergou um pouco minhas costas, e não há exercício que me endireite a cerviz. Pratico ainda a profissão e domino seus postulados, sei julgá-la em mim e nos outros. Ainda vivo dela como é possível. Contudo, os atuais donos das companhias ordenam que gente como eu não seja mais considerada. O fato de eu estar numa idade de comando e não de comandado lhes é intolerável, pois indica uma incômoda dependência, um pedido de favor. Então, os chefes previnem-se de mim.
Eu os entendo: é no mínimo constrangedor mandar em alguém que sabe mais que você, mas que não obteve a mesma sorte hierárquica. É inquietante. O erro intrínseco da ordem dada pelo jovem superior reflete-se no semblante do ordenado experiente sem querer, desautorizando-o como um deus mudo, identificando no ato a estupidez do experimento já conhecido pelo velho, que no entanto não é tratado como tal. O mundo empresarial carece de ilusão e fantasia, para além de faturamentos e balanços. No fim, trabalhar não passa de um jogo.
Então fico nesse interregno em que, segundo o Gramsci, coisas monstruosas podem acontecer. De minha parte, enceto um esforço calmo e constante, como nos movimentos do Tai Chi Chuan, os quais julgava ridículos em minha juventude, por ser um idiota. Minha atual velocidade é baixa e constante, como as árvores bem enraizadas que farfalham; e, se minha saúde não é de ferro, há de ser de madeira maciça, possivelmente de lei.
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Sim, ainda cultivo planos: minha parte jovem. E penso na velhice. Menciono algumas vezes a palavra aposentadoria e faço umas contas. Dei de me comparar a meus pais: noto o quanto a fase outonal da vida exclui muitas resoluções próprias, e isso me perturba levemente. Na velhice, o desincentivo é regra, e a força diária precisa ser extraída dos gases atmosféricos e da remanescente crença em Deus.
A meia-idade é muita idade e pouca idade. Ouço casos de pessoas que morrem com minha idade e de gente que tem filhos em minha idade. Fora os que não parecem ter a idade que têm, especialmente mulheres. Tem de tudo aqui. Hoje eu não saberia medir o grau de simpatia alheia nem de minha aceitação num determinado lugar, de modo que tento não incomodar e tento ser útil, acrescentando um pouquinho de cada vez. Se agradar, fico feliz e em paz.
Também penso na morte de vez em quando. No fundo, me preocupa o legado. Não no sentido de deixá-lo, não ainda; mas no sentido de construí-lo. Não quero deixar esse mundo de dores e de uma entropia sem fim sem deixar algum mínimo legado, não apenas a filhos — que podem descartá-lo como a um papel velho — mas a um número maior de pessoas.
Então, identifiquei na escrita o que poderia ser esse legado. Não escondo uma pontinha de pretensão aqui. Tenho um livro secreto e mais dois na cabeça, que me martelam e me cutucam e me pedem para escrevê-los. Tenho mulher, tenho filhos, não plantei a árvore, escreverei os livros; ao menos esses que não me deixam em paz. É dá-los ao mundo e posso morrer feliz.
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De ter saudade, desisti. Desprezo a nostalgia. O que de mal houve fica na lembrança (Camões), e ao bom não quero voltar. Curioso: eu devia ter saudade de muita coisa vivida e não vivida, mas não; embora nem de longe aprecie o mundo como está, não desanimo de vez. Sei os defeitos e eventuais compensações do presente. Conformo-me às improbabilidades. Além disso, sei os meus gostos e não os imponho a ninguém, não catequizo o gosto alheio. Que os outros sigam seu caminho, e eu sigo o meu. Minhas afinidades já estão estabelecidas, e impô-las seria para mim um aviltamento. Prefiro guardá-las como jóias, de um valor sentimental que só eu sei.
Felicidade? Não sou totalmente feliz nem infeliz, e não cultivo amargura. Estou nessa ponte sobre o abismo e prossigo a caminhada, apoiando-me, a passos calculados. De caminhar se faz o caminho, diz o poeta; e creio que nisso ele está absolutamente correto.
Plena posse
Plena posse dos meios de expressão: eis um elogio que fazem a certos autores tarimbados.
O termo dá o que pensar. O que seria a plena posse dos meios de expressão? Haveria uma linha divisória da expressão, de maneira que os de cá ainda não estão na plena posse e os de lá já estão?
Pergunto e respondo, ao menos arrisco: a plena posse seria atingida quando o texto daquele escritor não poderia ser melhor do que o agora apresentado. Mais, talvez a leitura do seu texto transpareça uma certa marca, personalizada e única, de quem escreve, de modo nítido e identificável.
Do ponto de vista de quem lê, a plena posse dos meios de expressão seria o retorno a uma “voz” textual já conhecida, mas que consegue ir um pouco além sem perder uma certa essência, uma forma reconhecível. Significa dizer que este escritor de pleno direito estabelece-se no mural das vozes literárias, ladeado de boas e de grandes companhias.
Identificar a plena posse dos meios de expressão não é bem uma ciência exata. É coisa de conhecedor, de gente que detém o conhecimento, o olhar clínico em matéria de literatura.
Seja como for, chegar a tal estado deve ser o objetivo de todo escritor — se assim já se pode apresentar ao público — e não há maior elogio do que este. Ou há: “adoro o que ele/ela escreve”, dito pelo leitor e pela leitora, da forma mais cândida, entregue e sincera.
Gostar de ser lido é a maior das recompensas para quem escreve e não faz isso por outro motivo senão o amor ao ofício literário. Às vezes, um amor não correspondido. Aliás, na maioria das vezes.
O alfaiate de Chesterton
Vejo umas fotos de Chesterton, um daqueles autores mais citado do que lido (por mim, inclusive). E ali naquelas chapas o seu Gilberto está sempre elegante e bem trajado, apesar da honorável pança.
Por muito tempo pensei que as panças nos homens jamais pode ser elegante. Ainda penso, na verdade. Experimente o distinto cavalheiro que não tem um corpinho de efebo adquirir um desses paletós de loja: por mais que meçam e ajustem, o abotoar do paletó tende a denunciar alguma protuberância rotunda ventral, i. e., pança.
Pior ainda se o senhor tirar o terno (paletó, blazer) e ficar apenas de camisa: as de agora são todas ajustadinhas dos lados para o tecido aderir à cintura. Deduzo que os costureiros projetam as peças fantasiando uns rapazes de modo não muito profissional quanto afetivo.
Mas tal não ocorria ao alfaiate de Chesterton. Abençoado seja aquele senhor, tão perito no ofício: até a soberba pança do inglês fica-lhe bem disfarçada, harmônica, parte de um todo visualmente agradável ou, ao menos, não repulsivo.
Não que eu tenha a pança de um Chesterton, mas estou longe dos corpinho dos rapazolas que os costureiros vislumbram ao projetarem suas peças, possivelmente lúbricos.
Então, se souberem de alguém que tenha o telefone do alfaiate do Chesterton, passe-me, por favor. Pode ser o endereço telegráfico.
Quem disse
“Onde o conhecimento não é preferível à ignorância, e a alta cultura à baixa, os inteligentes e os que têm sensibilidade sofrem a perda total do significado das coisas. O inteligente se autodestrói e o que tem sensibilidade perde as esperanças; e onde a decorosa sensibilidade não é alimentada, encorajada, apoiada ou protegida, abunda a brutalidade. A falta de padrões, como observou José Ortega y Gasset, é o início do barbarismo.”
— Theodore Dalrymple
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“É que, como os indivíduos, são suscetíveis os povos de crises mentais. Aberram às vezes da retidão. Há neles eclipses morais, ou, antes, estados patológicos, cuja etiologia difícil fora fixar, e que perturbam seriamente as funções do raciocínio, deturpam o caráter; determinam apetites vergonhosos e idiossincrasias vis.”
— Conde de Affonso Celso
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“Quanto mais um homem se aproxima das suas metas tanto mais crescem as dificuldades.”
— Goethe
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Muito bom!
Li esse texto na fila do banco. Foi uma experiência imersiva.