O CURIOSO E AVENTUREIRO QUE NÃO PAGA o preço da disciplina e contenta-se com uma imitação caricata do que pretensamente admira é chamado de mero diletante. Pelo menos assim diz o senso comum, e como a impressão negativa tem uma incrível força de crença e aderência nas mentalidades, todo significado ruim se sobrepõe ao bom, se algum houver.
Mas qual é o sentido original de diletante? Diz o dicionário que diletante vem de dileto: querido, preferido, amado, guardado no coração. Na raiz latina, diletante poderia ser definido como ‘o que se encantou e para aquilo foi atraído’.
Será diletante, portanto, aquele que descobriu e foi descoberto por um ofício artístico ou artesanal, e que, nesse encantamento acentuado a cada dia, não bastou o fruir passivamente da arte. Para o diletante, foi preciso entrar no cerne e ir a fundo, com dedicação de aprendiz. Isso inclui pagar o devido preço, sem esmorecer nem perder o ardor. O contrário do senso comum, portanto. Em algum ponto desconhecido da História, a exceção tornou-se regra.
Admirador dedicado, o diletante nutre profundo respeito pela área a qual resolveu se dedicar por livre escolha. Em geral, é autodidata e bebe direto na fonte. Ninguém o instou a encantar-se com nada e talvez ele ganhe nada com isso, a princípio. No processo de aprendizagem voluntária, ele respeita a tradição e os princípios da arte amada, enquanto a desbrava como quem tem um mundo inteiramente novo por descobrir.
Na admiração está a chave deste bom diletante: ele será um admirador que não apenas contempla, mas se interessa pela essência do elemento admirado. A admiração do diletante vai além da convencional, pois envolve reverência; depois, pode ser que ele derive a arte mediante o próprio talento aperfeiçoado via aprendizagem e, ao colocar algo de si nas obras que vier a produzir, contribua com a tradição da arte nalguma medida.
O diletante tem mestres, não existe sem eles. Não quer superá-los mas emulá-los. Não se satisfaz com a macaqueação, a caricatura. O diletante quer ser melhor apenas que ele próprio, cada dia mais, sob os ensinamentos dos grandes. E pode ser que, pela dedicação, ele torne-se mestre algum dia; embora não seja movido por essa intenção.
Seu motor é o amor, no fundo; a intenção principal do diletante é continuar a tradição da arte, ele se incumbe em levá-la adiante; dará o melhor de si na missão de vida que encontrou e que por ela foi encontrado. E, ainda que venha a se profissionalizar e reunir credenciais, em seu coração será sempre diletante.
Dileto versus trabalho alienado
Com a ascensão da Revolução Industrial e da divisão de trabalho que marcou o capitalismo moderno, a vida humana complicou-se formidavelmente. Aos poucos, os burgos se expandiram e ganharam o status de urbes, cidades; o campo esvaziou-se aos poucos — chegando a ermo em alguns casos —, e o trabalho artesanal se escasseou na nova dinâmica da produção fabril.
O ofício dos antigos artesãos era transmitido de pai para filho, e a produção artesanal encerrava um todo, integral, da matéria-prima ao acabamento. Pense num oleiro que fazia vasos de cerâmica, num carpinteiro que fazia móveis, num paneleiro. Agora, na fábrica, o trabalhador faz apenas uma parte do trabalho, a sua parte; um fragmento isolado do todo finalizado.
Dando um salto histórico, a situação se agrava no modelo fordista do início do século XX, na recém-criada linha de montagem: aqui, um sujeito aperta parafusos; ali, outro encaixa uma peça. Cada um mal sabe as etapas atrás ou adiante de si. Ele faz apenas o pedaço de serviço para o qual é pago. No final da linha, sai um novíssimo Modelo T, todo padronizado, que será comprado por um desconhecido que ignora completamente aquele minucioso processo de fabricação. O método virou regra.
Mesmo nos escritórios, a lógica do trabalho alienado permanece: separados por departamentos, os profissionais assumem uma pequena parcela das tarefas e dedicam-se a ela, especializam-se em pedaços incomunicados do todo. O funcionário recebe ordem, tarefa e prazo, mas não precisa saber de onde o serviço veio nem para onde vai. Técnico, analista, assistente: todos recebem ordens de seus chefes, sem necessidade de explicações quanto ao sentido daquilo; fazem, entregam, e passam o bastão ao próximo elemento do fluxograma, numa lógica sistêmica. São como dentes de engrenagens que se encaixam e giram em sincronia.
Interessante é notar como, nessa dinâmica, o profissional sabe quanto ganha pelo seu trabalho e pode até saber quanto os colegas ganham. No entanto, desconhece o quanto seu trabalho vale de receita diretamente à companhia. Qual o seu quinhão relativo no balanço contábil? O funcionário não tem parâmetros para saber se seu trabalho vale menos ou, o que é bem provável, muito mais do que recebe.
O trabalho alienado nas empresas requer a chamada mão-de-obra qualificada, isto é, gente especializada em cada etapa da divisão do trabalho: o técnico bem treinado precisa saber nada ou muito pouco além da parte que o cargo exige. É possível que, se enxergasse o todo como a águia que vislumbra do alto o território, ele se perdesse em elucubrações e se esquecesse o principal, o condicionamento requerido pela organização àquela função específica. No entanto, há no alto da hierarquia quem pense em sentidos e táticas. Mas o técnico jamais alcança esse nível de informação na companhia.
Eis a realidade do chamado mercado de trabalho, com pouca variação. Nesse sentido, o jovem vai à escola desde criancinha para, mais à frente, integrar-se ao mesmo sistema, enquanto, pressionado pela necessidade financeira e por responsabilidades da vida adulta, paralisa dentro de si o dom de olhar ao redor e dedicar atenção a algo além do pragmatismo imediato e do automatismo do serviço subordinado. Escapar a isso constitui uma exceção quase heróica.
O trabalho alienado gera não apenas uma percepção fragmentada da vida, mas cria no indivíduo um senso de utilitarismo vazio não percebido como tal. Tudo é imediato e feito para um outro mediante uma importância em dinheiro. Em regra, sem significação interior. Sem educação do espírito para contemplar e fruir a arte, meninos e meninas não têm a oportunidade de descobrir um talento inato que fica dormente e atrofia-se. A poda do trabalho alienado resume a vida a uma rotina sem sentido, movida pela pura e simples necessidade de dinheiro, pela pura exterioridade. Um outro tipo de miséria, no fim das contas.
O diletante no século 21
Embora substituída em grande parte pela automação industrial, a lógica fordista permanece ao menos como modelo mental indireto nesse século 21. Em plena Quarta Revolução Industrial, os ditames do sr. Ford permanecem, mas sofisticam-se e trazem agravantes.
Imersos na era digital, vemos espantados o aprendizado das máquinas via algoritmos cada vez mais sofisticados, e nos espantamos com as proezas da Inteligência Artificial. Por um simples comando — um prompt bem descrito — a plataforma combina um número infinitesimal de códigos binários numa sucessão de cálculos em milésimos de segundo e combinações de variáveis impressionantes. Ao final, transforma tudo aquilo num produto pronto e acabado, como se feito por um ou vários profissionais competentes.
A coisa vai a galope e mal inicia. Mesmo este experimental prompt, que hoje depende de um ser humano que o defina, já começa a ser definido pela própria inteligência artificial, a qual “corrige” a intenção expressa do demandante da vez: “você disse pau, mas o sistema detectou pedra.” A situação preocupa, no limite: se hoje é possível obter respostas produzidas por máquinas inteligentes, num futuro breve elas farão as próprias perguntas a serem respondidas, num esquema circular. Em meio a isso, o pensamento humano — ou, para usar um termo aristotélico, a volição — vai se obsoletizando.
Qual a saída? Apelar ao ludismo e destruir as máquinas? Talvez não; talvez a resposta seja mais simples do que parece. E a resposta parece estar, adivinhem só, no famigerado diletantismo. Vejamos.
30 anos em 3
A pandemia da Covid-19 forçou um repensar geral da lógica do trabalho mundo afora. Se é verdade que o capitalismo não mudou em nada na base, não foram poucos os profissionais da força de trabalho que, forçados pelo isolamento pandêmico, descobriram em casa novas habilidades artesanais ou artísticas adormecidas. E isso foi, tem sido muito bom.
Desde aquele período ainda fresco na memória, muitos redescobriram a panificação caseira, por exemplo; outros, a confeitaria; uns a pintura, o desenho, a leitura, a escrita literária; outros, o artesanato, etc. Quer dizer, sem querer o isolamento forçado induziu a certa contemplação, seja da arte, dos trabalhos manuais ou do simples horizonte no entardecer. Além disso, houve uma redescoberta dos talentos puramente humanos, antes atrofiados pela alienação das fábricas e escritórios.
Por meio da internet — redes sociais em especial — muitos descobriram maneiras de produzir e vender suas produções de gama variada e conseguiram, se não uma nova profissão, ao menos um trabalho paralelo com mais significado. Nessa esteira, houve um acréscimo impressionante ao autodidatismo, à busca voluntária por conhecimento que não fossem “cursos de qualificação”.
Hoje, o trabalho com significado é realidade, se não muito rentável, ao menos remunerado. Há quem adote uma maior frugalidade para viver exclusivamente do que gosta de fazer.
Diletantismo como saída
De modo que, aos poucos, o diletantismo retorna ao sentido original: escolhe-se a área de atuação por curiosidade, paixão, interesse profundo etc., e não por tabelas de salários ou planos de carreira. Abre-se uma possibilidade inteiramente nova. Aos poucos, o trabalho volta a ser feito por satisfação interior, e o suor no final do dia não vem junto com dores de cabeça pela pressão de chefias ou por estresses sem sentido.
Claro que nem tudo são flores. O mundo corporativo possui uma organização muito eficiente do lado de dentro e um modelo de negócio rentável do lado de fora. Para o diletante (no bom sentido, reitere-se), há o desafio da disciplina diária e de conseguir remuneração adequada; há um necessário acertar de ponteiros entre produtividade, vida doméstica, aprimoramento profissional, pagamento justo e adequado etc.
No Brasil, as pessoas relutam em priorizar o profissional autônomo em detrimento da grande corporação ou da marca famosa que faz reclames na TV — em que pese esta vender muito mais barato seus produtos convencionais e estandardizados. Nesse sentido, a bola está com as classes médias que, de resto, têm sido uma fração da população sonegada quanto a representações políticas, além de agredidas semiótica e simbolicamente nos grandes meios.
A classe média é hoje um colosso de demanda reprimida. Há potencial para criar um círculo de consumo interno, numa abordagem personalizada em círculos concêntricos ou em teias, por meio das redes sociais e mensagens instantâneas. Nada de novo no front: pelas redes, o velho boca a boca funciona link a link. Por outro lado, o bypass desdenhoso dos meios oficiais, ao invés de fraqueza, pode converter-se em força, que tanto mais fortalece quanto mais invisibiliza os cortes médios da população.
No final de um quarto de século, arrisco dizer que o trabalhador do futuro — a criança que hoje está na escola — será na maior parte autônomo e particularizado. Terá formação e ao mesmo tempo será diletante, considerando que as duas coisas não vivem separadas necessariamente. É possível que a arte e os trabalhos manuais tenham a chance de florescer como nunca. Na prática, o diletantismo irá cada vez melhor, enquanto a oficialidade caminha acima e paralela, e talvez rume a lugar nenhum.
Lembremos, porém: tudo será pequeno e de escala reduzida. De qualquer forma, a saída está no bom diletantismo aqui defendido: nele, a consciência humana estará sempre no comando, aprimorando-se mais e mais.
Impressões literárias
William Campos da Cruz, Tudo converge para o texto: gramática, escrita e leitura. Rio de Janeiro: Eleia Editora, 2024.
Depois de traduzir, preparar e revisar muitos livros de autores nacionais e estrangeiros, o professor William Campos da Cruz resolveu passar ao outro lado do balcão.
Antes, o formato: de bolso, prático e elegante. Há no Brasil uma rejeição ao formato compacto, bastante comum na Europa. A editora carioca Eleia foi na contramão e fez uma escolha muito feliz. Fica o exemplo às demais.
O texto do professor Cruz também é exemplar. Fala de gramática sem a chatice dos manuais, pois não é mesmo um manual. É um tratado introdutório, ensaístico, um incentivo ao estudo. Dividido em capítulos curtos, a obra tem a seguinte proposta: a gramática é amiga do leitor e do possível escritor.
O autor começa falando ao leitor-aluno e vai num crescendo até chegar ao escritor-aluno. Aluno, aqui, não é a turma na escola, mas cada um que lida com textos no dia a dia. Todo dia convivemos com o idioma e suas particularidades. O autor aborda o assunto com linguagem fluida e didática cristalina, de como incorporar este bom português no cotidiano à luz do estudo da língua.
William Campos da Cruz ensina com simpatia, como quem sorri. Sua prosa não economiza na afabilidade: é ler e se perguntar por que não se teve um professor assim a vida toda. Ele não franze o cenho e quer – sua mensagem indica – que façamos as pazes com a sintaxe. A gramática gosta de nós e quer o nosso bem, diz Cruz, que faz a língua portuguesa sorrir e não distribuir broncas à classe.
O homem à frente do tempo
Havia um homem à frente de seu tempo que falava coisas que ninguém sabia.
Ninguém o escutava, ninguém o entendia. O mundo o ignorava, tinha até quem brigava. Mas o homem prosseguia enquanto o tempo passava.
Num dia muito longínquo, alguns entenderam o que o homem dizia. Mas, muito velho, ele não mais ensinava. Justo agora que tanta gente queria!
O pessoal insistia para que o homem à frente de seu tempo falasse, mas ele não falava. Como ninguém o escutasse, o velho se recolhia.
Então, um dia, morre o homem à frente de seu tempo. E finalmente o mundo viu que ocorria o que o homem à frente de seu tempo dizia.
Mas era este outro tempo, e outro homem à frente do tempo surgia. A este ninguém atentava: o real era o outro, o mundo alegava: aquele, que há muito não mais vivia.
Quem disse
“Uma coisa deve ser evitada aqui: a mesquinhez estreita, pedantaria, literalidade obtusa. Todas as coisas estão interligadas, todos os fios juntam-se num só novelo. Vocês notaram que nas entrelinhas de certos livros passam revoadas de andorinhas, versetos inteiros de andorinhas trepidantes e aguçadas? É preciso ler o vôo desses pássaros…”
— Bruno Schulz
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“A beleza é algo maravilhoso e estranho que o artista capta do caos do mundo no tormento de sua alma. E quando faz isso, não é dado a todos conhecê-la. Para reconhecê-la, é preciso repetir a aventura do artista. É uma melodia que ele canta para você, e para ouvi-la novamente em seu próprio coração é preciso conhecimento, sensibilidade e imaginação.”
— W. Somerset Maugham
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“A menos que as pessoas se mostrem desagradáveis além do razoável, tenho o hábito estúpido de desenvolver certa afeição por elas. O que normalmente salta primeiro a meus olhos e forma a imagem pela qual passo a reconhecer quem comigo convive é a melhor parte de seu caráter, quando nele existe uma melhor parte.”
— Nathaniel Hawthorne
Direto do almoxarifado
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