#26. José Olympio ou morte
Sem a disposição do lendário editor, a continuidade da literatura brasileira estará ameaçada
REZA A LENDA QUE, NO RIO DE JANEIRO DE 1940, um ou outro jovem chegava ao balcão de certo estabelecimento à Rua do Ouvidor, 110, e procurava pelo proprietário. O dono se apresentava, e o rapaz da vez — ou moça, ocasionalmente — deixava nas mãos do homem detrás do balcão uns papéis datilografados, um original inédito.
O proprietário atendia pelo nome de José Olympio Pereira Filho, e o estabelecimento, Livraria José Olympio Editora. O rapaz em questão, entre acanhado e apreensivo, deixava o manuscrito sob a custódia do livreiro-editor, que combinava o seguinte: irei olhar, jovem; deixe seus contatos que, caso tenha interesse pela publicação, lhe retornarei.
E, de fato: seu José Olympio olhava e retornava a muitos daqueles moços que, convocados de volta à livraria, assinavam os papéis e saíam de lá com um cheque de adiantamento. Por essa rotina aparentemente prosaica, o dedicado livreiro tornou-se, entre as décadas de 1930 e 1950, o maior editor de literatura do país.
Há certo consenso em atribuir ao mineiro José Olympio a disseminação do romance regionalista em escala nacional, sem contar a publicação de clássicos da literatura universal no território, levando ao leitor brasileiro, pela primeira vez, obras canônicas para quem não podia ler caras edições em francês ou inglês.
Tempos românticos, aqueles. O exemplo de seu José Olympio tornou-se lenda na história do ramo editorial brasileiro. Sem sua iniciativa pessoal, tocada por algum ímpeto misterioso — misterioso até que alguém a explique numa biografia faltante e necessária — o país jamais teria acesso a grande parte de sua própria literatura, a seus próprios escritores, e portanto, a sua própria cultura. Tão importante foi aquele trabalho, motivado a princípio por apenas um punhado de sins — “sim, eu publico” — que boa parte daqueles autores e livros circulam ainda hoje, no século 21, fornecendo um retrato do Brasil para as gerações que se sucederam desde então.
Além de tudo, o bom editor não apenas publicava, mas dialogava, era amigo dos escritores. Dava-se bem com um sanguíneo e reacionário José Lins do Rego e com um introvertido e comunista Graciliano Ramos; recebia uma conservadora Rachel de Queiroz e atendia um anarquista Carlos Drummond de Andrade. Que importava a ideologia? Importava a arte: homem de consciência universal, José Olympio encontrou-se com o universo em maio de 1990.
O papel do editor
A história de José Olympio serve de preâmbulo para ilustrar — no caso, por frontal oposição — o que tem acontecido no provinciano mercado editorial brasileiro. Provinciano: embora paquidérmico em extensão territorial e população, do ponto de vista da difusão cultural o país tem a dimensão de um camundongo em termos proporcionais.
Em muitos aspectos o Brasil não passa de mastodôntico vilarejo. Ora, o que temos aqui? Três bancos privados, dois estatais; nem meia-dúzia de canais de tevê; quatro companhias de telecomunicação; e, por fim, duas grandes editoras, para ficarmos nesses exemplos. Em termos absolutos, o país de 2024 não é tão diferente daquele de José Olympio nem muito mais auspicioso; só mais complicado e perdido na loucura globalizante dos dias que correm.
Voltando às editoras, lembro de duas grandes casas que dominam o país. Elas dão o tom do mercado editorial e servem de biruta de aeroporto às outras, médias e pequenas, ao indicar para onde o vento sopra: se elas publicam tal e qual, as outras, sem instrumentos próprios de aferição, publicam o mesmo tal e qual, vão a reboque. Há por outro lado editoras pequeninas que, por oposição às gigantes, publicam o que aquelas ignoram solenemente, mesmo havendo demanda: o que essas bravas editorazinhas fazem é comunicar-se diretamente com o público desprezado pelas grandes e oferecem alguma obra muito desejada, às vezes requerida, seja nacional ou estrangeira. Neste caso, as grandes são referência por exclusão.
Contudo, e a exemplo do seu José Olympio, o editor brasileiro desempenha um papel que ultrapassa a mera estratégia mercadológica. A decisão de publicar uma obra, mesmo nessas companhias fatiadas a stakeholders, passa também por fatores muito humanos, subjetivos e de boa vontade, além de empenho pessoal e desejo de fazer dar certo. Há muito de preferência pessoal por baixo dos pitchs e drafts que orientam os projetos dessas companhias.
Cá de minha choupana, não me canso de conferir os lançamentos dessas editoras imensas, especialmente a prateleira literatura brasileira: a julgar pela amostra, me pergunto que valores andam a nortear os senhores e senhoras que sacam as canetas e redigem os contratos. Quero dizer, me pergunto que tipo de obra eles esperam receber, sob quais critérios, para então publicar aqueles lançamentos que ultrapassam a dezena mensal. Faça as contas, é livro pra chuchu anualmente. E, pelo que consta, o que sempre vai ali?
Wokeism
O que vai ali é nada menos que a temática progressista encampada pela agenda 2030 da ONU, subsidiada por fundações bilionárias, operada por ONGs globais e parceiros locais, e vitaminada na prática pelo espírito de luta e denunciação sistemática da militância, sob a égide wokeism americano. Wokeism que, em outras palavras, poderia se chamar esquerdismo do século 21: saem os proletários e a velha luta de classes, de baixo para cima, e entram as minorias catalogadas e a representatividade estética de pele, cabelo e sexo, de cima para baixo.
Não vamos entrar propriamente no tema wokeism, que é vasto; para a análise basta dizer que, bem azeitados pelos bilhões de dólares filantrópicos e depois por verbas públicas, a demanda por temas transversais¹ pressiona (e incentiva sobremodo) a produção de uma pseudoliteratura atualmente ubíqua, que usurpa o lugar da literatura artística em si.
Dão uma desculpa esfarrapada para isso: há literatura tradicional demais, quando esta justamente desaparece dos catálogos, sem reedição. Enquanto isso, drenam o caixa das editoras numa alegada ocupação de espaços, a repelir leitores enquanto atraem a grana preta dos editais. Resultado: sobra uma má literatura feita de ativismo e escrita ruim, que se faz importante por inchaço, via hype de agitação cultural, e não pela preferência dos leitores.
Hoje, os novos autores das grandes editoras brasileiras precisam trazer a manjada temática ou nada feito: defesa de minorias, revisão histórica de raças; defesas de povos originários; empoderamento feminino e seus queixumes; combate a patriarcados e machismos (ser contra homem branco hétero, basicamente); etc. etc. De modo que as obras escolhidas a dedo devem obedecer somente a tais pautas. De preferência, devem ser produzidas por escritores de aspecto fisiológico correspondente, pois ajuda no marketing.
Nessa dinâmica, pouco importa o teor da obra. Qualidade é coisa de burguês. Se há tese e léxico de acordo, o carimbo aprobatório será batido. Se atende às cláusulas da agenda, a coisa será aprovada. E dá-lhe banana para a arte. De resto, o livro nem precisa ser lido, repercutido, criticado, esmiuçado; basta ser vendido, de preferência aos lotes, graças às verbas de governo ou às da educação privada sob os ditames do MEC. Excelente aos caudatários do wokeism; péssimo para os leitores e para a literatura em si, que morre de asfixia. A nacional, sobretudo.
Tudo é crítica, crítica é tudo
A situação é especialmente cruel no caso brasileiro. Tudo aqui se sente mais, pois o país é um sapato apertado. Em contraste, pegue-se o exemplo de sempre, os Estados Unidos: ali há literatura de todo tipo. Lá está o berço do wokeism, decerto, mas há variabilidade na praça: circula também o calhamaço capa-e-espada, o thriller à Stephen King, a trilogia do adolescente, o chick lit da universitária.
Ali se pode dizer que há um mercado editorial democrático real, não no sentido abrasileirado do termo (democracia é quando eu mando em você), mas no sentido amplo: há escolha e incentivo à produção variada. Quem quiser alienar-se, fique à vontade. Ora, democracia também é isso: direito ao escape, opção pelo entretenimento, mero prazer da arte.
A variabilidade de temas no mercado editorial brasileiro, no entanto, obedece a uma lógica perversa: quem quiser escapar que procure os títulos estrangeiros traduzidos (não só americanos; aqui publica-se de tunisiano a albanês), ou recorra aos medalhões incontornáveis ou vá ao sebo. Agora, quem quiser uma coisa nossa saindo do forno, sinto muito: tome crítica social em livro ruim.
Crítica social. Desde a escola o menino e a menina aprendem que livro brasileiro só serve para criticar alguma coisa. Livro brasileiro, parece, tem a única função de denunciar mazelas e lamentá-las. Distrair em português do Brasil é crime. Rir em nossa língua é prevaricação. Contar história nacional é blasfêmia.
A julgar pelas amostras publicadas semana a semana — pelas grandes casas já mencionadas — tem-se a impressão que o escritor brasileiro deve interditar em si a história divertida, alegre, bela etc.; o livro brasileiro deve sofrer e lamentar. No máximo ironizar de modo impotente, mas jamais deixar de reclamar ou esfregar-na-cara-de-quem-lê.
Então, o leitor ingênuo é hostilizado, visto como um anêmico social a ser tratado, no fim das contas. Engula a tese da obra de uma vez, dizem: livro brasileiro tem cara de remédio, parece.
Mas a literatura nacional é só isso? Óbvio que não. Há exceções fora do grande circuito. Ocorre que a configuração do mercado força essa demanda, e os autores imbuídos das dores e lágrimas ancestrais — nos termos do wokeism à brasileira —, só produzem essa cantilena esquemática, sem sangue, sem vida, sem alma: daí a pseudoliteratura. Uma coisa desnutrida, que força um parecer sem de fato ser.
A impressão que resta é que as grandes editoras só não declaram guerra ao prazer de ler porque compensam com uma literatura estrangeira de vitrine, com edições caprichadas e boxes vistosos para as estantes da classe média.
De modo que, se por um lado a literatura brasileira tem sido uma papa pegajosa e insossa de problematizações, por outro compensam o leitor comum com clássicos retraduzidos, autores internacionais inéditos, além de capas duras e lombadas coloridas que façam sacar o cartão de crédito na Black Friday. Assim, a doce leitora nem perceberá a instrumentalização do produto nacional que fazem, enquanto lê a reedição chique do Drácula, de Bram Stoker.
Quem perde, quem ganha
Dizer que essa abordagem beira o sufocamento deixa felizes os beneficiários da agenda, os escritores woke à brasileira, cada vez mais solicitados e celebrados nos clubinhos.
Dia desses, um escritor da onda² disse, talvez falando pelos cotovelos, “os brancos estão com medo de mim”. Ele dizia e sorria. O rapaz se quer negro, mas é mestiço com uns sóis a mais. Ora, mas só há brancos preocupados? O próprio negro que não siga a pauta correta também deve estar: a menos que providencie uma peruca exuberante e desande a anunciar injustiças de catálogo. Se quiser mudar de assunto, porém, está fora do jogo. Igualzinho ao tal branco que o rapaz tripudia, todo pimpão.
De modo que parece ser essa mesma a intenção, afinal; atrapalhar a escrita sincera. Não melhorar e contribuir, mas estragar o que podia ser bom. Uma coisa invasora. Como o método ali é jamais confessar intenções, tudo fica discernido pelo lusco-fusco e pelas insinuações captadas excluindo-se as alternativas. Daí, a sensação de água até o pescoço sinaliza a vitória dos pseudos. Será mesmo?
Eles tem motivos para se gabarem, certamente. Surfam na onda. Entretanto, seria muita pretensão achar que a arte literária será transformada em seu DNA por essa abordagem, ainda que regada por bilhões. Nosso soberbo escritor do morro devia saber que a opção por ele ocorre antes por decisão tática que por eventuais méritos literários pessoais, se os houver. Pois trata-se disso, no fim das contas: venda por atacado. Se os livros saírem ou não das caixas, tanto faz.
O que as grandes editoras parecem esquecer é daquele espírito que moveu o velho José Olympio, de faro e tino aguçadíssimos: cabe a quem publica uma responsabilidade intransferível de expor a arte que existe e a que nasce; arte pura sem salamaleques estéticos de ocasião. Nossos editores grandes (e não grandes editores, outra coisa) podem continuar a dizer “não” a isso e obedecer a chefes, donos e sócios. Nem por isso a arte deixará de dar o seu jeito, como aliás tem dado.
Nunca foi tão simples produzir livros sob demanda. Pequenas editoras surgem aqui e ali, e batalham, sem dúvida batalham, para suprir a demanda reprimida por literatura de verdade, sem carimbo da ONG ou agenda global. Faltam escala e dimensão às obras, mas não mercado: a fagulha existe e aumenta ao nível da chama. Para terminar em incêndio, é um pulo.
Quanto às grandes casas, não sei por quanto tempo vão fingir que não existe outra coisa. A internet e o boca a boca virtual respinga em toda parte. A autêntica literatura sobrevive e novos josés olympios surgem por aí. Sem contar que o poder muda de tempos em tempos.
Bem, mas isso é com eles. Do lado de cá, o negócio é trabalhar e trabalhar.
O honorável funça
Há profissões briosas de toda sorte, todas dignas em si mesmas; mais que dignas, necessárias. Neste nosso Brasil, não há profissão mais enraizadamente brasileira que o funcionário público, nosso honorável funça.
O funcionário público é o patrono da brasilidade. Falo nele e me vem a figura do sujeito, ali pela meia-idade, barriguinha saliente, há muito concursado e efetivo na burocracia do estado. Digamos que ele atenda o público, o dito cidadão brasileiro: chega lá dona Maria, chega lá seu José. Então, o funcionário público será a ponte necessária entre o pobre nativo e a burocracia de estado.
“Da próxima vez, baixe o aplicativo do governo. Lá o senhor faz isso sem fila, seu José.”
“Quê, meu filho? Sei mexer em computador, não.”
“Tudo bem, olho aqui pro senhor. Seu documento, por favor.”
Então nosso representante da ordem pública prende um bocejo enquanto digita os dados num formulário, confere informações: para ele, seu José é um formulário; dona Maria, uma tela.
O funcionário público clica com energia de jabuti. Com olhos mortiços, olha o monitor igual de todo dia, deixando transparecer zero interesse na vida e derivados. O bom da função pública é a aposentadoria; enquanto ela não chega, o tédio. Coitado do seu José. Mas todo mundo é seu José, todo mundo é dona Maria nesse Brasil. Toda hora um seu José e todo dia uma dona Maria a precisar de nosso funça que espera a sonhada aposentadoria integral.
Sem dizer nada, nosso baluarte da cidadania vai buscar uma folha na impressora laser do outro lado da sala. Levanta da cadeira a custo, mas consegue. Agora, terá de explicar o próximo passo burocrático a seu José, à dona Maria. Ele explica. Eles entendem patavina, mas acenam em concordância, obedientes.
E se vão. Dobram o papel bem dobradinho e se vão, com vagar, reverentes. Nosso baluarte cumpre seu honorável papel. Podia ficar feliz, mas não dá tempo:
“Senha 227”, pipoca na tela.
Outro seu José, outra dona Maria. “Um dia eu me aposento”, pensa nosso promotor da dignidade pública. E prende um bocejo.
O aforismo
O aforismo é um acidente da escrita: trata-se do último parágrafo de um longuíssimo texto argumentativo cuja argumentação pareceu complicada demais ao argumentador, e que, depois de lê-la e achá-la obscura ou atrapalhada, limou-se tudo e restou apenas a conclusão: isso bastava, e cada um que argumentasse o que desse na telha a partir dela.
Nietzsche foi assim: escrevia textos longuíssimos, extensíssimos. Relia e detestava o que escreveu, com exceção do último parágrafo. Então, pegava aquele aforismo, passava a post-its oitocentistas e os colava na parede do quarto.
Um dia encontraram o bigodudo num café – na última mesinha diante da qual ele sentava de costas para a rua – e, ao reconhecê-lo, o emocionado freguês perguntou: “esse trechinho, seu Quico, esse aforismozinho aqui no livro, o sr. podia explicar melhor?”
“Não!”, disse um irritado Frederico, sorvendo o café ruidosamente. “Não me importunes!”
“Nossa, que grosso!”, disse o freguês com o saquinho cheio de mini-croissants quentinhos. “Nunca mais compro livro do senhor!”
Quem disse
“O vulgo aprova as amizades por sua utilidade. Preocupa-se mais com o que convém do que com o que é honesto e a fidelidade mantém-se firme ou se perde com a fortuna. Difícil é encontrar-se um só entre muitos milhares que pense que a virtude é sua própria recompensa. A própria honra de uma ação reta, se faltar a recompensa, não estimula a ninguém e se arrepende de ser honesto gratuitamente. Não é digno de apreço senão o que traz proveito.”
— Ovídio
*
“De fato, o indivíduo que foge à padronização jamais esteve tão sujeito a riscos ou tão competentemente ameaçado por essa conspiração de poder que temos a gentileza de chamar de governo. Os mecanismos de controle social são mais sofisticados do que jamais o foram na história, mais sofisticados ainda naqueles países em que a legislação ocasional parece inclinar-se em favor do indivíduo.”
— Morris West
*
“Como indivíduos, descobrimos que nosso desenvolvimento depende das pessoas com as quais no encontramos no decurso de nossas vidas. (Essas pessoas incluem os autores cujos livros lemos, e personagens em obras de ficção e de história.) O benefício desses encontros se deve tanto às diferenças quanto às semelhanças; ao conflito, tanto quanto à simpatia, entre as pessoas.”
— T. S. Eliot
Direto do almoxarifado
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