#25. Os meninos consertados
Reportagem exclusiva da revista New Science, edição de novembro de 2048
QUANDO O GENE DO MACHISMO foi identificado pela dupla de cientistas Meredith Mayer e Sheronda James-Jones, a comunidade internacional vibrou com aquilo que a presidente americana Angela Streep classificou como “a libertação da humanidade”.
Isso porque, graças ao mapeamento da linha machista presente no DNA dos humanos-com-falo, seres popularmente chamado de homens, as pesquisadoras conseguiram remover com sucesso, já no colo do útero e na fase embrionária, o que se convencionou chamar de a linha indesejada.
A linha indesejada é justamente aquela que a dupla Mayer-Jones identificou com elegância e demonstrou ser possível removê-la do código genético, de modo simples e eficaz, como quem remove uma linha conflitante num código-fonte de um software ou aplicativo digital.
“Acho que consertamos um enorme ‘bug de programação’ dos humanos, quem sabe o maior deles”, disse uma emocionada doutora Mayer no discurso de premiação. Ela se referia ao fato de que, a partir da descoberta, em pouco mais de meia década todos os meninos já viriam de fábrica com a linha defeituosa ausente, o que desde então tem sido apontado pelas lideranças globais como a maior conquista da humanidade desde a clonagem da ovelha Dolly, no século passado.
A descoberta chamou a atenção da comunidade científica mundo afora, e gerou repercussão não só nos meios especializados como motivou a comissão do Nobel a laurear as geneticistas com distinção alvissareira. Após uma intensa sessão de aplausos efusivos, a dupla foi ovacionada como popstars na cerimônia de entrega do prêmio.
As primeiras correções genéticas – sintetizadas na forma de vacina de mRNA 7.0 e adquirida em massa pelos principais governos do mundo – causaram alvoroço. A procura foi enorme. A imunização em massa foi administrada em cada canto do país, de metrópoles a vilarejos, de forma ampla e gratuita. Propagandas televisivas com ídolos e influencers da internet de cada país convidavam os adolescentes e crianças a se vacinarem nas escolas, shopping centers e parques da cidade.
A ideia era imunizar cada jovem contra o “gene ruim”, as propagandas diziam, antes que a geração chegasse à vida sexual ativa. Depois, devidamente imunizada, todos poderiam ter filhas e especialmente filhos totalmente isentos de machismo na dupla hélice do código genético.
A vacinação mundo afora foi um sucesso, uma verdadeira revolução. Como previsto, em pouco tempo os resultados se mostraram favoráveis: as taxas de violência contra as mulheres caíram substantivamente. Em alguns locais, houve mais queixas de violência de mulher contra mulher do que de homem contra mulher. Nem mesmo a típica violência de homem contra homem houve como antes, exceto nos cortes geracionais renitentes e não-imunizados, a maioria a caminho da terceira idade. Mas as taxas negativas estacionaram na mediana inferior, o que levou a OMS a declarar meses atrás o machismo tecnicamente erradicado do Ocidente.
Efeito colateral
Isso foi há vinte anos. Tudo parecia ótimo desde a descoberta, até que os primeiros nascituros sem a linha indesejada atingiram a puberdade. Nessa fase, observou-se certas peculiaridades que os novos espécimes machos da humanidade, imunizados desde a gestação, traziam em relação aos equivalentes defeituosos do passado.
Os primeiros imunizados e reprogramados — de diferentes partes do globo e de variadas etnias — foram observados com perícia pela competente dupla Mayer-Jones nos laboratórios do MIT, os mais avançados do mundo. Nos testes, observou-se alguns efeitos colaterais leves, considerados de baixo risco: queda da taxa de hormônio do crescimento na glândula pituitária e ausência de pelos corporais como os espécimes de antigamente.
Além disso, a textura da epiderme e a densidade das fibras musculares dos meninos pareciam muito semelhantes ao das meninas, mais suave e adiposa. A contagem de cabelos no couro cabeludo também equivalia ao delas. Antes, o número de bulbos capilares era tradicionalmente menor nos meninos.
Os testes preliminares não apresentavam nada de muito crítico segundo as premiadas com o Nobel. Diretoras de corporações e chefas de governo, no entanto, causaram certa pressão e desconforto às geneticistas, preocupadas respectivamente com a produtividade em funções específicas destinadas aos machos (trabalhos pesados ou com risco iminente de morte). As governantes diziam não dispor de verbas públicas para destinar a algo como “saúde do homem”, como há meio século se ocupa com a saúde da mulher, termo consagrado, assentado e tradicional nas resoluções da OMS.
Conforme os primeiros anos passaram, observou-se entre os garotos imunizados e reprogramados uma retração fálica atípica, algo como um minúsculo cisto injetado logo abaixo do púbis, sem possibilidade de estender-se. O calo foi apelidado pela medicina de segundo-umbigo, algo como uma protuberância discretamente saliente. Nos testes, as vesículas seminais dos garotos não produziam qualquer substância de tipo viscosa ou seminal.
Testes de indução erógena foram realizados. Após preencherem um questionário de múltipla escolha, os garotos consertados foram submetidos a imagens de meninas atraentes em visores de realidade aumentada iVision, com graus variados de insinuação sexual até a pornografia explícita. No entanto, eles não esboçavam reação. Alguns bocejavam. No monitor, o mapa de calor não indicava mais que manchas verdes e azuis na região íntima dos meninos, o que indicava ausência de circulação sanguínea, e portanto, zero estimulação.
Questionada a respeito, doutora Mayer declarou ser aquilo algo a se observar e não deu maiores detalhes; segundo ela, os garotos do laboratório contavam de quinze anos a dezoito anos e, tudo indicava, suas taxas hormonais chegariam ao ápice entre os vinte e vinte e cinco; era esperar, portanto. Já a doutora James-Jones divergiu da colega: disse que, aos quinze anos, os garotos deviam manifestar certas inclinações psicológicas e psicomotoras que os levassem à atração sexual por meninas, “o que, no limite, garantirá a existência delas no futuro”, declarou. “Sem reprodução humana, não haverá mais meninas. A neo-humanidade estará comprometida”.
Outro lado
Dias depois, nossa reportagem conversou com doutora Mayer em Berna, na Suíça. A cientista é a estrela principal do Global Genetics Summit desse ano, encontro anual de geneticistas promovido pela Organização Mundial da Saúde. Perguntada a respeito da posição da dra. Jones, ela respondeu à nossa reportagem.
“Minha colega de Nobel exagera. Claro, existe a possibilidade de não haver mais intercurso heterossexual como nos tempos arcaicos e patriarcais. No entanto, a espécie humana e sobretudo as meninas do futuro não correm risco, a meu ver. Veja, estou aqui em Berna para acompanhar, entre outras inovações do próximo quinquênio, a reprodução assexuada feminina que hoje é apenas proibitiva por uma questão econômica. Mas os governos vão entrar de cabeça na questão nos próximos meses, e o Banco Mundial irá subsidiar o direito autofecundante das mulheres mundo afora. A autofecundação humana estará disponível a todas elas em muito breve.”
Doutora Mayer se mostra otimista, como de praxe. Embora, no caso dos meninos reprogramados, soube-se que os dois primeiros consertados no DNA faleceram no mês passado, em plena adolescência: um de ataque cardíaco fulminante e outro por leucemia repentina, sem qualquer histórico familiar ou fator de complicação anterior.
O fato ligou um alerta nos críticos, especialmente nos grupos gays conservadores. Nos países de Primeiro Mundo, mulheres com posses já compram, com ágio e no mercado negro, sêmens de machos arcaicos congelados. Há relatos de fazendas seminais (seminal farms) na Holanda, Bélgica e na própria Suíça onde dra. Mayer está a palestrar. Cada frasco congelado custa uma fábula estimada em milhões de dólares. O artigo ficou raríssimo.
Alguns discutem importar espécimes da África profunda ou da Índia, mas especialistas temem lidar com uma criatura desconhecida da humanidade moderna, há décadas livre do macho arcaico. “As consequências seriam imprevisíveis”, disse uma alarmada dra. Jones, “você pode ver um leão nas fotos e nos vídeos da TV e gostar, mas ninguém quer um leão no carpete da sala”, declarou.
O fato é que os dois primeiros jovens consertados morreram, e há relatos de outros meninos consertados morrendo ao redor do mundo, todos por causas semelhantes. Em certos países, alguns deles passaram a relacionar-se afetivamente entre si, assexuadamente. A repetir o padrão, a reprodução humana inviabiliza-se. Todos se afastam naturalmente das meninas do ponto de vista afetivo. Providenciais vacinas de reversão-homo têm sido administradas nas escolas para tentar mitigar o efeito, em caráter de urgência. Por enquanto, sem sucesso.
Observação de campo
Nossa reportagem foi a Palm Lake, em New Jersey, vilarejo pioneiro na imunização e correção da linha defeituosa nos meninos. Entramos num colégio público famoso por ter todos os alunos imunizados desde as primeiras campanhas. Observamos de longe o comportamento dos alunos, todos do ensino médio — adolescentes, e portanto, na fase do flerte e da paquera — e conversamos com alguns daqueles jovens.
As meninas dizem não se atrair pelos garotos consertados, embora reconheçam a segurança de estar entre amigas mesmo na presença dos meninos. Todos somos amigas, disseram. “Amigas?”, perguntamos a uma aluna. “Sim”, ela respondeu, “lidamos com amigas e amigas um pouco diferentes, nada além disso”. A escola foi emblemática no passado, com histórico de muita violência simbólica de gênero. As manchetes estamparam os jornais. Hoje, a diferença no ambiente se mostra gritante. Ou melhor, silenciante, isto é, sem grito algum.
Os garotos consertados são reservados. Ficam pelos cantos, em pequenas turmas. Alguns permanecem totalmente isolados, e todos parecem tímidos e pacatos, até um pouco amedrontados. Ao perceberem nossa presença, saem do local e se afastam. Parecem evitar uma abordagem. Numa roda, em meio a meninas vimos um menino consertado, cujo longos cabelos loiros elas alisavam e encaracolavam com os dedos, aos risos. Colocaram o garoto no meio da turma e o tratavam como se estivessem num salão de beleza, fazendo comentários a respeito de hidratações e shampoos que dão brilho capilar.
Enquanto isso, relatórios independentes dão conta de que a mortalidade masculina jovem anda numa proporção de 39:1 em relação a meninas. A prosseguir neste nível, estima-se que em duas décadas não haja mais meninos nos países imunizados.
Doutora Mayer atenua: “acho improvável. Mas digamos que aconteça, no limite? Fariam falta? Sempre digo, aquelas que quiserem podem consultar a internet e as bibliotecas e ver gravuras de quando homens arcaicos caminhavam sobre a terra. E eu diria a elas, se estivesse por perto: vocês estão bem e em segurança porque estão sem eles.”
De volta ao colégio secundário de Palm Lake, nossa reportagem notou como algumas meninas tem raspado o cabelo e imitado o visual de homens calvos do passado, uma moda propagada via TikTok. “Quero ser o Jason Statham”, disse uma delas, sorrindo. “Vejo os filmes dele e pareço com ele agora, não pareço?”
Não parece: a reportagem ia responder, quando outra menina puxa o rosto de nossa Jason Statham a si e a beija nos lábios: “está igualzinha, meu bem. Mas livre do machismo”. A turma toda gargalhou.
Impressões literárias
(Inspirado nas crônicas de Manuel Bandeira de mesmo nome, a partir dessa edição de Prosaica publico comentários a respeito de livros que leio, com preferência a autores contemporâneos brasileiros)
Alexandre Sugamosto, Cárcere. Brasília: Editora Sator, 2023.
O título é autoexplicativo: as personagens estão numa cela, por crime não mencionado. Então a prisão simbólica ou metafísica seria, presumo, a existência humana na Terra. Digo presumo, pois resta subentendido na leitura.
Se a existência no mundo é cárcere, há qualquer resíduo gnóstico na proposta. (Em palavras paupérrimas, o gnosticismo apregoa ser esse mundo de dores um lugar governado pelo demiurgo, ente maléfico postado entre o Criador e nós, pobres mortais). Assim seria ao longo da História e ao longo da peça de Alexandre Sugamosto.
Na cela estão Reinaldo, um rei em farrapos e Eulália, sua mulher-moderníssima e rainha consorte, plena e empoderada. Ele fala um português castiço (ó, vós, etc). Ela, o português médio de anteontem.
Se falássemos de política – de que Cárcere não fala exatamente – o homem certamente seria de direita, um ser naufragado no mar agitado dos tempos confusos; sua mulher estaria à esquerda, desprovida de crenças e à vontade no espírito moderno, amante das rupturas e a desprezar tudo que não seja a materialidade.
Os diálogos são ágeis. Às vezes, porém, os personagens parecem discursar. Imagino que, na peça, os atores falariam à plateia nesses momentos. O que fica, para usar uma comparação, são situações algo nonsense como Alice no País das Maravilhas: as partes são mais importantes que o todo, e de cada bocado se tira alguma lição.
O texto de Sugamosto flui e embala. Seria bom ver a peça encenada para compreendê-la mais a fundo: talvez a montagem deixasse tudo mais acessível e claro ao público espectador — para quem, afinal, se destina um espetáculo de teatro.
Diagramador vs. designer gráfico
Sou designer gráfico de ofício, embora deteste a expressão. Antes, fui diagramador puro e aplicado. Três décadas nessa brincadeira e a coisa não sai de você. E acho que nunca sairá.
Mas eu adorava ser diagramador, o encarregado por desenhar as páginas da publicação, organizá-las visualmente e torná-las fáceis de ler, atraentes, úteis etc.
Diagramei jornal e revista (principalmente), e livros. Para se ter uma idéia, diagramar para mim sempre foi um ofício mais-do-que-técnico. Lidar com texto por décadas e integrá-lo a imagens tornou-se missão. Às vezes, valorizava mais o texto na diagramação do que o autor. E internalizei a idéia de que o texto – sempre alheio, no caso – devia ser servido com a melhor apresentação aos distintos leitor e leitora. Ao menos, me esforçava para isso.
Banido da diagramação pura e aplicada graças ao demônio smartphone, tive de agarrar-me nos cipós do design gráfico para comprar o leite das crianças. A designação me irrita pelo kitsch despercebido pelo hábito: design (inglês) + gráfico (português). Coisas do Brasil, como canta Guilherme Arantes.
Pois na senda brumosa deste design gráfico fui do analógico e passei ao digital, e cá estou. Mas minh’alma é analógica. Se você pensa que meu coração é de papel, acertou. Uso as telas, porém não as aprecio nem um pouco.
De modo que declaro que, se ninguém mais gostar de papel, se toda a população mundial odiar o papel, se toda a artilharia bélica voltar-se contra o papel, eu continuarei a amar o papel. Aqui e em outra dimensão.
Acho o papel moralmente superior ao digital, é o que tento dizer. Gutenberg começou com a Bíblia e agora mora no céu. Merece o galardão.
Quanto a nós, se cá nos encontramos nesta tela comunicante, vossa senhoria há de convir que viemos a contragosto e fomos meio forçados a isso, não? Pare pra pensar: o tal de digital toca o coração de alguém?
Quem disse
“As pessoas são como rios: a água é a mesma para todos e é igual em toda parte, mas cada rio é ora estreito, ora rápido, ora largo, ora calmo, ora limpo, ora frio, ora turvo, ora morno. Assim também são as pessoas. Cada um traz em si o germe de todas as qualidades das pessoas e às vezes se manifesta uma, às vezes outras, e não raro acontece de a pessoa ficar de todo diferente de si mesma, enquanto continua a ser exatamente a mesma.”
— Tolstói
*
“Comprazer-se na sua limitação é uma situação miserável. Sentir sua limitação em presença do que é excelente é certamente angustioso, mas esta angústia eleva.”
— Goethe
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“Nada mais horrível do que ver um homem convicto, não de um crime, mas de uma fraqueza mais que criminosa.”
— Joseph Conrad
Direto do almoxarifado
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Fui revisor de jornal e trabalhava na bancada dos diagramadores. Bons tempos.